Em 2020, havia aproximadamente 43,3 milhões de pessoas cegas no mundo e mais de 295 milhões com deficiência visual moderada a grave.

Além da escuridão

(John Fontenele Araujo e Karen Cristina Pugliane)

Você já se perguntou como é o sono de uma pessoa cega? Para quem vive em uma eterna escuridão, os desafios vão além das barreiras físicas, envolvendo também a regulação do ciclo sono-vigília. Estudos com pessoas cegas, especialmente aquelas sem percepção de luz, têm mostrado que muitos apresentam dificuldades para manter um ritmo circadiano regular. Essa condição é conhecida como “distúrbio do ritmo circadiano não-24 horas”.

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O ritmo circadiano é o ciclo natural de aproximadamente 24 horas que regula diversas funções fisiológicas em humanos, como o sono, a temperatura corporal e a produção hormonal. Esse sistema é controlado por uma estrutura cerebral chamada núcleo supraquiasmático (NSQ), localizada no hipotálamo. O NSQ é sincronizado principalmente pela luz do ambiente, que é detectada pelos olhos e transmite sinais ao NSQ, ajustando nosso relógio biológico ao ciclo claro-escuro. Essa sincronização ocorre principalmente através da inibição da produção do hormônio melatonina pela glândula pineal durante o dia e sua liberação à noite, quando a luz é ausente.

É importante ressaltar que a cegueira é uma condição complexa e existem pessoas cegas que apresentam algum resíduo visual, como percepção de luz, cores ou sombras. Porém, para aqueles considerados cegos totais, a sincronização pela luz não ocorre, o que resulta em  um ritmo biológico interno que pode se desviar do ciclo natural de 24 horas. Esse desalinhamento pode causar sintomas como insônia, sonolência diurna excessiva e dificuldades para manter uma rotina regular. Surpreendentemente, um estudo inovador realizado em Natal, no Rio Grande do Norte, revelou que nem todas as pessoas cegas — mesmo aquelas sem qualquer percepção de luz — desenvolvem esse distúrbio.

O estudo em Natal

A bióloga Natalia Depieri e o professor John Araujo em visita ao Instituto dos Cegos do RN em Natal, RN. Foto tirado pelo senhor Marcos Antonio da Silva, que é cego e diretor do IERC-RN

A pesquisadora Natália Dipieri, bióloga e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), investigou o ciclo sono-vigília de 25 pessoas cegas vinculadas ao Instituto de Educação e Reabilitação de Cegos do Rio Grande do Norte (IERC-RN) em 2019. Para surpresa dos pesquisadores, apenas um dos participantes apresentou um padrão de sono típico do distúrbio do ritmo circadiano não-24 horas, sugerindo que outros fatores poderiam estar influenciando o sono desses indivíduos.

Para investigar mais a fundo, a psicóloga Karen Pugliane, doutoranda da UFRN, retomou o estudo com uma abordagem mais tecnológica e detalhada. Karen utilizou actimetria, uma técnica que envolve o uso de dispositivos semelhantes a relógios para medir indiretamente os ciclos de atividade e repouso, que refletem o padrão de sono. Ela também introduziu técnicas avançadas de análise de dados, baseadas em inteligência artificial, após realizar um estágio na Universidade de Northumbria, no Reino Unido.

A análise de Karen permitiu classificar os participantes cegos em dois grupos distintos: um com alta estabilidade circadiana e outro com baixa estabilidade. Essa abordagem revelou que o tipo de cegueira (com ou sem percepção de luz) não era o principal fator determinante para a estabilidade do ritmo circadiano, desafiando pressupostos anteriores. Os resultados indicam que outros fatores, possivelmente comportamentais ou ambientais, estão contribuindo para a regulação do ritmo em pessoas cegas que vivem em regiões de baixa variação sazonal, como Natal.

Implicações futuras

A esquerda, os pesquisadores no IERC-RN com os diretores do IERC-RN Marcos Antonio da Silva e Gleide Dias de Medeiros. Na imagem à direita, a pesquisadora Karen na Universidade de Northumbria, Inglaterra. (Montagem dos autores)

Compreender a diversidade dentro da condição da cegueira é fundamental para interpretar seus impactos. Em 2020, segundo uma análise global publicada pela GBD Vision Loss Expert Group, havia aproximadamente 43,3 milhões de pessoas cegas no mundo e mais de 295 milhões com deficiência visual moderada a grave. A catarata permanece como a principal causa evitável, responsável por cerca de 39,6% dos casos de cegueira, afetando majoritariamente mulheres (cerca de 60%). Além disso, fatores como o envelhecimento populacional e o aumento da prevalência de doenças crônicas, como o diabetes — que pode causar retinopatia diabética — têm contribuído de forma significativa para o crescimento absoluto dos casos nas últimas décadas.

É importante ressaltar que mais de 90% dos casos de cegueira ocorrem em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde o acesso limitado a cuidados oftalmológicos ainda representa uma barreira importante à prevenção e ao tratamento oportuno. A deficiência visual pode comprometer não apenas a mobilidade, a socialização e a autonomia, mas também afetar ritmos biológicos essenciais, como o sono — um fator muitas vezes negligenciado, mas fundamental para a saúde física e mental.

Ignorar essas dimensões invisíveis do impacto da cegueira é perpetuar um cenário de desigualdade em saúde. Dessa forma, investir em pesquisas que revelem como pessoas cegas vivem e regulam seus ritmos internos — mesmo sem luz — é essencial para desenvolver estratégias que promovam dignidade, autonomia e qualidade de vida.

Esses achados abrem novas possibilidades para desenvolver intervenções comportamentais e tecnológicas que possam melhorar a qualidade do sono em pessoas cegas, oferecendo uma perspectiva promissora para a inclusão e qualidade de vida desses indivíduos. O próximo passo do estudo é investigar esses fatores mais detalhadamente, na esperança de que todos os cegos possam ter um sono mais regular e restaurador. Em nossa pesquisa estamos investigando a rotina de alimentação, atividades físicas e sociais e alguns fatores físico ambientais como a temperatura.

Com essa nova fase da pesquisa, os cientistas esperam publicar em breve novos resultados que possam contribuir significativamente para a compreensão dos mecanismos que regulam o sono em pessoas cegas, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

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John Fontenele Araújo é professor titular do Departamento de Fisiologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Karen Cristina Pugliane é aluna no Doutorado em Psicobiologia na UFRN