Neste mundo, não basta mais cultivar apenas a ética da resignação; é preciso também mitificar a ciência fazendo dela uma arte (Foto: Tânia Rego / Agência Brasil)

Para os espíritos que (ainda) fazem da ciência uma vocação

(Carlos Freitas)

Entre os anos 1917 e 1919, o sociólogo alemão Max Weber realizou duas importantes conferências para os estudantes da universidade de Munique. Desencantado com os rumos da Primeira Guerra e com o desastre político que a mesma foi para a Alemanha, Weber proferiu os discursos “ciência como vocação” e “política como vocação”. Compartilhando um mesmo caráter filosófico de reflexão, os dois textos também exprimiam a atmosfera de “resignação” na qual se encontrava o estado de espírito do velho Weber.

Você percebeu que o Nossa Ciência não tem fontes de recursos? Considere contribuir com esse projeto, mandando pix para contato@nossaciencia.com

Na conferência de “A ciência como vocação”, proferida em 07 de novembro de 1917, o tema da “perda de sentido” recebeu uma atenção especial como “diagnóstico de época” e a “resignação” apresentado como o tratamento profilático apropriado para aqueles que fizeram da ciência sua vocação. Na sua conferência de 1917, Weber tratou ainda do sentido mesmo do fazer ciência. Ele advertiu que para aquele que deseja seguir os passos do trabalho científico, dentre outras atitudes, era necessário reconhecer que “(…) o homem como homem nada tem valor fora daquilo que ele não seja capaz de fazer com paixão”. E que ao lado da paixão, caminha a “inspiração”, sentimento cada vez mais raro numa época em que numerosos jovens atribuíam à ciência um saber especializado no mero “exercício de cálculo” e de uso gélido do intelecto, tão distante da alma.

Aos jovens aspirantes da ciência como vocação era igualmente necessário reconhecer que a racionalização intelectualista promovida pela ciência e pela técnica não implicava necessariamente maior conhecimento sobre as condições de vida, mas a tomada de consciência acerca da inexistência de quaisquer “poderes misteriosos imponderáveis interferindo na vida”. Que tudo que não se conhece na natureza pode ser, em princípio, revelado e dominado por meio do cálculo. Que ainda assim, nada carrega em si algum sentido.

Passado mais de um século e as palavras proferidas pelo velho Weber parecem nos assombrar quando somos confrontados com as multidões de nosso próprio tempo

Que ao lado do crescente desencantamento do mundo, emerge um novo tipo de “politeísmo” que não é aquele mesmo do velho mundo encantado por seres mágicos. Mas um “novo politeísmo” onde nem deuses, nem espíritos e nem demônios disputariam o monopólio da atenção humana, mas de diferentes esferas da vida social em contínua rota de colisão e conflito. Nesse universo de pluralismo de valores e de escassez de sentido, a única exigência normativa válida ao cientista seria conservar a sua integridade intelectual e o compromisso de compreensão objetiva da realidade. Fornecer o esclarecimento sobre o funcionamento do mundo, e possibilitar os meios técnicos recursivos para dominá-lo. Para Weber, na impossibilidade de concebermos hoje um horizonte de sentido compartilhado por todos ou ainda um horizonte de sentido dado como certo e inquestionável, restaria apenas dotar o espírito da consciência da tragédia do tempo presente e cultivar uma ética da resignação: “a quem não é capaz de suportar com hombridade esse destino de nosso tempo é preciso aconselhar que preferencialmente retorne calado, sem o costumeiro alarde dos renegados, e sim modesta e simplesmente, aos braços bem abertos e piedosos das velhas igrejas”.

Passado mais de um século e as palavras proferidas pelo velho Weber parecem nos assombrar quando somos confrontados com as multidões de nosso próprio tempo: populações numerosas de especialistas sem espírito, de sensualistas sem coração e de idiotas empoderados que rivalizam atenção na esfera pública. Nem de longe, portadores da “boa nova” e ou de novos sentidos. Mais se assemelham a demiurgos de escatologias de conjuração de velhos mundos; promotores do “amor fati” pela experiência limite do tempo anulado de uma vida sem justificativa. E para aqueles que ainda fazem da ciência sua vocação? Neste mundo, não basta mais cultivar apenas a ética da resignação; é preciso também mitificar a ciência fazendo dela uma arte. Uma vontade de criar, pois ao palácio da sabedoria o excesso caminha e a abelha laboriosa não conhece o tempo das tristezas.

Se você chegou até aqui, considere contribuir para a manutenção desse projeto. Faça um pix de qualquer valor para contato@nossaciencia.com

Leia outros textos da coluna Humanas

Carlos Freitas  é sociólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN.