Pergunte, logo exista!

(Gláucio Brandão)

Por séculos, a máxima de Descartes, “Penso logo Existo”, ressoou como a essência da existência humana, fundamentada na consciência e na razão. No entanto, na vertiginosa “Era da Inovação”, onde a informação inunda tudo e a Inteligência Artificial (IA) processa dados com velocidade sem precedentes, o mero “pensar” não garante mais a relevância ou a “existência” em um sentido produtivo e inovador.

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Surge uma nova e poderosa verdade: “Pergunte, logo Exista!”. (GBB-San, 2025). Em minha visão, esta reformulação posiciona a habilidade de perguntar como a verdadeira fonte de valor e diferenciação humana, tornando-se o novo pensar na era da sobrevivência em mercados dinâmicos. Considerando que o que falo faz sentido, vamos aprofundar.

O cenário atual é inegavelmente influenciado pela ascensão da IA, uma força inexorável e poderosa na resolução de problemas pré-definidos (novamente: já definidos!). A IA é programada para convergir, ou seja, encontrar a melhor solução para desafios já estabelecidos, dominando problemas de determinação com volume e velocidade incomparáveis.

Contudo, uma distinção crucial emerge: a IA não é capaz de criar um ‘bom problema. Ela não possui interesse genuíno ou consciência para fazer perguntas que impulsionem a verdadeira criatividade ou para divergir, questionar o status quo ou gerar o “porquê” das coisas. Em um mercado de tecnologias perecíveis e inovações voláteis, a capacidade humana de criar problemas torna-se o diferencial competitivo e a base para o futuro das profissões, que chamei de “ofícios perguntantes”.

A arte humana de elaborar o “bom problema”

A habilidade de formular problemas é essencialmente humana e estratégica para a inovação. A criatividade pode ser treinada com ferramentas que estimulam o pensamento divergente e a busca por anomalias. Em vez de apenas resolver, é preciso criar problemas relevantes — algo que IA ainda não domina.

Definir bem o problema é, muitas vezes, mais difícil que solucioná-lo; uma boa pergunta revela a causa, não apenas o sintoma. Romper a inércia psicológica exige questionar limites e inverter padrões, despertando a imaginação. Técnicas como o Triztorming transformam contradições em oportunidades de inovação. A maiêutica socrática convida a autorreflexão e ao pensamento crítico. Ao visualizar ideias em desenhos ou protótipos, liberamos espaço mental para conexões mais criativas. Modelos como Jobs To Be Done ensinam que não vendemos soluções, mas resolvemos tarefas. São os problemas que moldam os mercados.

Criar um bom problema é muito mais do que complicar uma equação. É desestabilizar o sistema atual para revelar brechas ocultas, contradições latentes e caminhos inexplorados.

Exemplo? Em aulas de eletrônica, propus um cálculo simples de capacitância — até inserir uma “mossa” aleatória na placa metálica. Um detalhe. Uma anomalia. Um desconforto deliberado. Resultado? A aula explodiu em novos raciocínios, analogias e, principalmente, perguntas. Criar problemas é gerar anomalias em sistemas estáveis. Introduzir caos criativo, forçando a dúvida e promovendo atrito cognitivo onde antes havia conforto operacional.

Responder à pergunta “o que ainda não sabemos?” parece simples: cura do câncer, fim da pobreza, da violência etc. São questões conhecidas, embora ainda sem solução. O verdadeiro desafio está nos problemas que sequer percebemos — aqueles que “não sabemos que não sabemos”.

A pandemia da COVID foi um exemplo desses. Vamos a outras: Estamos sendo observados por alguma inteligência fora da Terra? Existe um asteroide supraluminar invisível a caminho? Nosso DNA tem prazo de validade? O que é a consciência? Por que o tempo só avança? Até onde a inteligência artificial pode ir sem consciência? Por que há mais matéria do que antimatéria? Por que o universo parece ajustado para permitir a vida?

E sobre as perguntas “mais fofas”, que ainda não existem por serem proibidas? E se o “erro” for uma forma mais elevada de aprendizado? Será que temos que criar sensores (ou sentidos)? Que fenômenos deixamos de perceber por confiar nos sensores errados?

O dilema humano e o futuro

A constatação de que a IA pode resolver qualquer problema, mas não criá-los, tem implicações profundas para o futuro do trabalho e da educação. Em um mundo onde não há mais empregos, no sentido tradicional, os profissionais precisarão criar seus próprios empregos e, dentro deles, criar problemas para resolver.

A relevância profissional dependerá da habilidade de saber fazer perguntas e da capacidade de pensar como solução do mundo que está surgindo. A educação deve se transformar para formar fontes geradoras de conhecimento e problemas, em vez de meras antenas que recebem e transmitem informações.

Em um cenário onde a eficiência algorítmica da IA otimiza o conhecido, a verdadeira existência humana não reside em competir com essa otimização, mas em transcender o esperado. “Pergunte, logo Exista!” encapsula a necessidade de uma postura proativa e questionadora. Não se trata de apenas consumir informações ou resolver o que já foi definido.

A verdadeira existência, no contexto empreendedor e inovador, reside na audácia de desestabilizar o conhecido, na coragem de criar outras inquietações e, a partir delas, forjar um futuro próprio. A inteligência humana detém o poder de “desbravar o desconhecido”, formulando as perguntas que a IA ainda não consegue conceber, mantendo-se o diferencial crucial para a relevância contínua e a propulsão da inovação em nosso mercado e em nossa própria trajetória.

Última fronteira humana

Enquanto a IA automatiza o previsível, resta ao ser humano o incômodo do inédito. Criar um bom problema é gerar um novo mapa para a realidade, coisa que máquina alguma faz. O futuro da própria humanidade passa, inevitavelmente, por essa escolha: ser um resolvedor de ordens ou um criador de dilemas. A IA pode resolver muita coisa, mas não cria nada que valha a pena ser resolvido, pois ela só converge. O humano diverge! Isso ficou danado de bonito.

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Gláucio Brandão é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do livro Triztorming