Carlos Lima e Celso da Silveira, que o identificava como “amigo-irmão”. (Legenda e foto: Geraldo Queiroz no livro Um editor camarada. Natal Offset, 2022)

O campo editorial e suas relações de (des)afeto

(Cellina Muniz)

Há algum tempo, venho me dedicando à pesquisa sobre as práticas editoriais em solo potiguar, debruçando-me especialmente sobre dois casos: de um lado, a Clima, livraria, gráfica e editora comandada pelo jornalista Carlos Lima entre os anos de 1978 e 1997, responsável por um catálogo de 195 edições de autores norte-rio-grandenses; e de outro lado, as atuações mais contemporâneas de autores que decidiram ser também editores, criando seus próprios selos editoriais. Aliás, já tratei desse tema em outros artigos desta coluna Linguaruda.

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Pois foi muito gratificante constatar que um dos aspectos que acredito constitutivo em ambos os casos também pode ser apreendido no relato de um dos principais nomes do campo editorial brasileiro: Luiz Schwarcz, o criador da Companhia das Letras.

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O primeiro leitor

Lendo seu livro recentemente publicado, “O primeiro leitor”: ensaio de memória (São Paulo, Companhia das Letras, 2025), é possível confirmar como uma editora se faz não só de relações e funções de trabalho. Como se sabe, do autor ao leitor, o caminho que um livro percorre é longo e passa por muitas etapas: seleção do texto, revisão e reescrita, diagramação e composição, tradução e ilustração, divulgação e lançamento são algumas dessas fases de um processo que implica muitas frentes (artística e jurídica, por exemplo) e não só habilidades profissionais por parte dos sujeitos envolvidos, mas que consiste também, em significativa proporção, de afetos.

(Foto: Cellina Muniz)

Nos relatos de Schwarcz, a presença das relações que extrapolam o patamar de trabalho se mostra muito evidente na vivência do editor e alguns nomes são necessariamente citados. Como, por exemplo, Caio Graco Prado, filho do criador da Editora Brasiliense, o intelectual Caio Prado Junior. Atuando na Brasiliense antes de fundar a Companhia em 1986, o trabalho e a amizade entre Caio Graco Prado e Luiz Schwarcz deram luz a uma das coleções de maior sucesso no país, a série Primeiros Passos, que entre os anos de 1980 e 1990 lançou mais de 200 títulos e certamente fez parte da trajetória de qualquer universitário brasileiro.

As relações de amizade fazem parte radical de toda e qualquer história editorial. Graciliano Ramos e José Olympio, por exemplo, são um dentre tantos inúmeros casos. Como o próprio grande editor e livreiro revela em carta citada no livro “Brasilianas”: José Olympio e gênese do mercado editorial brasileiro, de Gustavo Sorá (São Paulo, Editora da USP, 2010), “Graciliano, quando não estava em casa, passava o dia na livraria…” (p. 220).

Outros muitos nomes são citados no livro de Shwarcz. Outro que tem destaque é o do escritor Rubem Fonseca, grande contista e romancista com quem Luiz Schwarcz, que já era fã, tornou-se mais do que editor, tornou-se também amigo. Até pelo menos o episódio da troca de um e-mail, narrado sem muitos detalhes, em que a amizade entre o editor e “Zé Rubem” se desfez.

Terras potiguares

Assim é a vida e assim também são feitas as práticas editoriais, sejam as do centro hegemônico, sejam as das margens periféricas: de afetos e, também, de desafetos. O fato é que a amizade tem papel vital. Em terras potiguares, a Editora Clima não seria a mesma sem os laços entre Carlos Lima e Celso da Silveira, por exemplo. Ou o catálogo das Edições Munganga não teriam a mesma força e vigor se Victor H. Azevedo não tivesse encontrado Ayrton Badryah.

Nessa direção, as relações de coocorrência e de concorrência entre editores e seus selos editoriais poderiam ser vistas e vividas de maneira saudável, sem a pretensão babaca e esnobe de fingir que o outro não existe. Que caras tristes, diria o poeta Cazuza… Permitir que o desafeto seja mola-motriz de práticas editoriais é cair na lógica predatória do capitalismo que alimenta mais o viés de competição do que o de solidariedade. Somar é muito melhor.

Porque, convenhamos, há um lugar ao sol para todos. Bom mesmo é que haja livros! E quando suas páginas, então, concretizam-se a partir de laços de amizade, melhor ainda.

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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.