Em “Criação de Deus” da artista cubana Harmonia Rosales, Deus é uma mulher negra (Imagem: Reprodução do Portal Geledés)

Efervescência étnica na esfera pública subalterna

(Andressa Morais)

Mais do que uma gramática de lutas por acesso a bens materiais e simbólicos escassos na configuração institucional das modernas sociedades complexas e diferenciadas, a política do reconhecimento movida e alimentada por grande parte dos movimentos sociais contemporâneos revela a exigência moral de uma nova compreensão e autocompreensão da estima social compartilhada por indivíduos e grupos sociais.

Já foi assinalado pela tradição de estudos críticos frankfurtianos que isso somente é possível numa relação intersubjetiva de reconhecimento. Não obstante, também ressalto os limites temporais e situacionais de concepções compartilhadas de justiça. E mais, quando isso ocorre, caberia ao direito intervir em questões ético-políticas que envolvam trazer para dentro do “guarda-chuva” de proteção jurídica formas de vida outrora desconhecidas, ou mesmo, não reconhecidas. Nesse sentido, meu percurso narrativo envolve um olhar sobre o modo como a Marcha das Mulheres Negras articula suas demandas de reconhecimento, procurando evidenciar as fontes de sua indignação e os seus sentidos de justiça.

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Sabe-se que as diferentes formas históricas de vínculo entre noções de justiça e valores socialmente institucionalizados ganham centralidade na articulação dos movimentos sociais, como também sabemos que os mesmos apresentam empiricamente um extrato das condições situacionais ou contextuais de mobilizações dos diferentes sentidos de justiça pelos atores coletivos que se reúnem em marcha. Tal modo de mobilização social provoca uma reflexão acerca dos conflitos entre múltiplos sentidos de justiça que ganham lugar numa manifestação coletiva na esfera pública.

Hegemonia do princípio de igualdade

No caso do Brasil, pensar em esfera pública não pode ser dissociado de outros contextos do universo discursivo de normas, projetos e concepções de mundo publicizadas e expostas ao debate público, nos termos habermasianos, e requer ainda sua articulação com o espaço público, este que talvez seja o lócus principal da discriminação cívica entre nós. Há em nossa esfera pública uma hegemonia do princípio de igualdade como valor que não se realiza da mesma maneira para todos os corpos que nela habitam. O respeito atitudinal neste caso opera como um marcador expressivo dessa igualdade de tratamento almejada coletivamente e vivenciada de forma estratificada, difusa e hierárquica.

Segmentos excluídos de um tratamento equânime e justo reivindicam na forma de suas mobilizações coletivas arenas discursivas paralelas nas quais circulam seus sentimentos de indignação e injustiça, mas também as novas pulsões de democracia e participação política. Eis o sentido proeminente de uma marcha realizada por mulheres negras. Tal ato público ressalta ao mesmo tempo a existência de grupos marginalizados que demandam um lugar social de legitimidade política e cidadania plena para habitar.

No momento de sua presença no espaço público percebemos a afirmação de uma pertença étnica e encontramos um forte conteúdo crítico pronunciado contra as desigualdades raciais que estruturam as relações em nossa sociedade. Enquanto movimento coletivo protagonizado por mulheres negras, a marcha confere um lastro político discursivo expresso em formas distintas de comunicação (oral, visual, corporal e escrita), momento de produção de uma cidadania encarnada na manifestação coletiva. Movidas por demandas de reconhecimento, mulheres negras publicizam uma crítica social e estética.

Reconhecimento como valor

Neste ano uma ênfase foi dada aos sentidos de justiça que podem ser reunidos em eixos comuns: bem-estar, autonomia, liberdade, autenticidade, expressividade, crítica social, dignidade e reparação. A expressão forte e elucidativa que está presente no conteúdo articulado pelas mulheres negras este ano é o autorrespeito, no sentido de reconhecimento intersubjetivo compartilhado. Na prática, o reconhecimento recíproco das mulheres negras, sujeitas de si e comunitárias em todas as esferas da vida social, é um desafio que se busca como horizonte dessa Marcha. Por isso é preciso considerar os fenômenos e experiências, subjetivas e coletivas, de injustiça para entender as motivações que reúnem esse coletivo de mulheres. Na vida social é preciso deixar claro como expressão pedagógica para a sociedade as diversas formas de reconhecimento que deverão ser asseguradas para que essa mesma sociedade possa ser considerada justa e é isto que se pretende a partir de um ato político como uma marcha.

As mulheres negras, a partir de dentro, das suas experiências cotidianas de desrespeito, de baixa estima e de abusos, organizam-se desde já para estar na rua em novembro articulando a expressão completa de suas experiências negativas de rebaixamento, agressão e vulnerabilidade. Cientes do que é sentir na pele diariamente os efeitos perversos da violência física e moral expressa nas formas da injúria racial do racismo, reivindicam a reparação e o bem viver como expoentes da convivialidade. E é desse lugar, das experiências múltiplas e concretas que a noção de sentidos de justiça deve ser elaborada e atualizada este ano no ato da marcha para reeducar a sociedade ao respeito mútuo e para abrir caminho para um sentido de justiça em que as pessoas possam ter e chegar a uma atitude positiva diante de si mesmas e umas com as outras.

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Andressa Morais é antropóloga e professora do Instituto Humanitas da UFRN