As desigualdades na história de nossas sociedades

(Alipio DeSousa Filho)

Desde os primeiros registros das sociedades humanas organizadas, a desigualdade tem sido um traço marcante e persistente da vida coletiva. Embora diferentes culturas e épocas tenham construído suas próprias formas de organização social, quase todas compartilharam estruturas hierárquicas que privilegiaram alguns grupos em detrimento de outros. Desigualdades de riqueza, poder, prestígio, gênero, etnia, sexualidade e saber estiveram sempre presentes nas sociedades e culturas humanas desde pelo menos o Neolítico Pré-Cerâmico antigo (cerca de 11.500 a 10.000 anos atrás). Uma estrutura social de classes e elites são atestadas na pesquisa histórica na maioria das sociedades agrárias do passado humano, o que inclui os territórios da China, Europa, Ásia Meridional, África, noroeste da América do Sul (Incas), México (Astecas) e América do Norte.

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Para historiadores como Walter Scheidel, no mundo antigo, constituiu-se o “1% original” de classes, elites e poderosos com o privilégio de acesso desigual e superior à renda, riqueza e poder. Esse “1º original” nunca deixou de existir na história de nossas sociedades, ele apenas se modificou (e aumentou, aumentando as desigualdades).

Na Antiguidade, as sociedades escravistas, como a grega e a romana, baseavam-se em uma divisão radical entre os que detinham direitos e os que eram tratados como propriedade. A desigualdade era legitimada por filosofias e religiões que apresentavam a ordem social como natural ou desejada pelos deuses. No sistema feudal europeu, a nobreza e o clero gozavam de privilégios garantidos pelo nascimento, enquanto camponeses e servos viviam submetidos a regimes de exploração extrema. Mesmo após a Revolução Francesa, que proclamou a igualdade como valor universal, novas formas de desigualdade se firmaram com a ascensão do capitalismo.

O mundo moderno não aboliu as desigualdades, apenas as reconfigurou. A expansão colonial europeia instituiu uma brutal divisão planetária entre países dominadores e povos colonizados, e sob justificativas racistas. A escravidão moderna, baseada no tráfico transatlântico de africanos, deixou marcas profundas e persistentes nas sociedades da América do Sul e da América do Norte, e igualmente não menos nas próprias sociedades europeias colonizadoras.

No século XX, com o avanço dos direitos sociais e políticos, surgiram promessas de redução das desigualdades, mas não as vemos diminuir. No Brasil, por exemplo, mesmo após a abolição da escravidão em 1888, não houve inclusão efetiva da população negra na sociedade. O resultado foi a perpetuação de desigualdades regionais e sociais, baseadas também no racismo, que atravessam até hoje a vida nacional.

Nas nossas sociedades, atualmente, desigualdades intoleráveis ainda excluem mulheres, marginalizadas historicamente da educação, da política e da economia formal; só mais recentemente ocorrendo mudanças significativas. E desigualdades também intoleráveis seguem sendo sustentadas por categorias de pensamento e normas morais que excluem, estigmatizam e violentam pessoas gays, lésbicas, transexuais, travestis. Mesmo em sociedades que proclamam igualdade legal, a vida cotidiana dessas pessoas é frequentemente marcada pelo medo, pela rejeição familiar, pela precariedade econômica e pela violência física — muitas vezes letal. Como apontam autores como Judith Butler e Paul B. Preciado, essas desigualdades não decorrem de diferenças naturais, mas da construção social de normas sexuais e de gênero que buscam regular o que é considerado “inteligível” e “aceitável” nas sociedades.

Desigualdades também podem ser observadas e denunciadas ao se ver a mesma lógica excludente aplicada a migrantes, refugiados e estrangeiros em diversas partes. O fechamento de fronteiras, o racismo, a xenofobia crescente e a criminalização da mobilidade humana revelam uma geopolítica da desigualdade que hierarquiza a vida segundo nacionalidades e origens étnicas. Achille Mbembe nos lembra que há populações inteiras tratadas como descartáveis, vidas consideradas matáveis — aquilo que ele chama de necropolítica.

Hoje, no século XXI, convivemos com níveis extremos de desigualdade global. Um pequeno grupo de pessoas concentra de modo absurdo uma parte da riqueza mundial, enquanto bilhões vivem em condições precárias. As desigualdades de acesso à educação, à saúde, à moradia e à própria dignidade acentuam as divisões. O crescimento da violência, da intolerância e das políticas reacionárias e autoritárias está diretamente ligado à manutenção de privilégios no acesso à renda, à riqueza e ao poder, por parte de classes e elites, tal como entre aquele “1º original” no mundo antigo.

No entanto, é essencial lembrar: as desigualdades não são fenômenos naturais ou inevitáveis. Ainda toda sua duração na história das sociedades, mas construções sociais e históricas que refletem interesses de dominação, disputas simbólicas e escolhas políticas. As desigualdades são também uma realidade que dependente de sua consagração no simbólico, isto é, no plano da linguagem humana, das ideias, crenças, representações, mentalidades, numa palavra, no plano da ideologia — e combatê-las passa por reimaginar o que consideramos justo, possível e desejável. É tempo de imaginação!

Sociedades mais igualitárias são possíveis — e devemos imaginá-las e desejá-las! Isso exige vontade política, crítica e modificação de estruturas e instituições de poder, dominação, assim como requer a participação ativa das pessoas na vida pública.

Não é demais repetir, tudo aquilo que tem sido construído social e historicamente, nas nossas sociedades, o que inclui estruturas, instituições e relações de desigualdades, é igualmente revogável, substituível!

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Referências

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Alipio DeSousa Filho é professor e diretor do Instituto Humanitas UFRN