Resta a dúvida se na leitura de uma obra, a dimensão moral deve se sobrepor à dimensão artística, estética e histórica.

Até onde pode ir o humor ou quais os limites de uma obra?

(Cellina Muniz)

Venho estudando o humor e suas manifestações desde pelo menos 2009, ano de defesa da minha tese sobre fanzines e revistas alternativas em Fortaleza (CE). Analisando algumas dessas produções periféricas do campo literário, compreendi que aspectos como irreverência e deboche eram um traço muito recorrente, o que me fez buscar compreender a especificidade de um texto humorístico. De lá para cá, envolvi-me cada vez mais com o estudo sobre o humor em suas diferentes possibilidades teóricas de abordagem, mas principalmente sob o viés linguístico-discursivo. Assim é que venho promovendo e participando de eventos acadêmicos, orientando pesquisas na Pós-graduação e publicando artigos e livros sobre a temática, como “Na tal cidade do humor” (Edições Sebo Vermelho, 2013), “Notícias da Jerimunlândia: a imprensa de humor em Natal na Belle Époque” (Edições Sebo Vermelho, 2016), “Linguagens do cômico, práticas discursivas do humor” (Editora da Uece, 2017), “A pauta é: humor” (Edições Sebo Vermelho, 2021) e “Textualidade: ensino e aprendizagem com gêneros humorísticos” (Editora da UFRN, 2024).

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Tudo isso para dizer que, nessa trajetória, tenho notado cada vez mais visível e intenso o debate sobre os limites do humor. O que é positivo, de antemão: colocar em discussão posicionamentos divergentes é um dos elementos de uma sociedade democrática. Vários casos recentes ilustram bem os caminhos polêmicos que o humor sugere, o que pode ser resumido na seguinte questão: até onde pode ir o humor?

O debate sobre os limites do humor é positivo, uma vez que colocar em discussão posicionamentos divergentes é um dos elementos de uma sociedade democrática

Acredito que muito de toda essa polêmica tem a ver, sobretudo, com as lutas importantes e necessárias de movimentos sociais organizados e as discussões sobre pautas identitárias. Nessa direção, por exemplo, pode ser citado o livro de Adilson José Moreira, “Racismo recreativo”, da Coleção Feminismos Plurais (São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020), que ilustra magistralmente como programas de TV aparentemente inofensivos disfarçavam (e disfarçam ainda) discriminação e injúria racial sob a roupagem do humor.

Cellina Muniz pesquisa sobre o humor em suas diferentes possibilidades teóricas de abordagem, mas principalmente sob o viés linguístico-discursivo.

Nessa perspectiva, usos e abusos historicamente perpetuados de ofensa e agressão a segmentos como negros, mulheres, pessoas com deficiência, LGBTQIA+ e outras minorias perseguidas e marginalizadas não são mais tolerados impunemente. Léo Lins que o diga.

Mas se por um lado parece legítimo afirmar que o piadista deve arcar com o teor de sua piada, principalmente quando se trata de um humorista profissional, a discussão toma matizes mais sutis e complexos quando migramos do humor para a literatura, o cinema, a música e as artes em geral.

Ler ou não ler aquele livro cujo autor (ou autora) cometeu atos (inclusive os verbais) preconceituosos e discriminatórios? Assistir ou não àquela peça ou filme de cuja autora (ou autor) se sabe uma ignomínia? Como ouvir aquela canção ou sinfonia de quem tem o nome manchado por uma mácula moral?

Eis algumas questões. E elas se proliferam ainda mais em minha cabeça com a leitura do livro “Monstros: o dilema de uma fã” (Lisboa: Quetzal Editores, 2024), da escritora e crítica de arte estadunidense Claire Dederer. Logo no prólogo, ela apresenta a contradição inquietante entre “a grandeza de uma obra e a atrocidade de um crime”, assim explicando um drama que acomete muita gente: Oxalá alguém inventasse uma calculadora online em que o utilizador introduzisse o nome de um artista e a máquina comparasse a barbaridade do crime à grandeza da arte e cuspisse um veredicto: poderíamos ou não consumir a obra desse artista.

No livro de Claire, são abordados exemplos já conhecidos: Roman Polanski, Wood Allen, Bernardo Bertolucci, J.K. Rowling… E na nossa Bruzundanga temos também nossos casos, como Monteiro Lobato e Câmara Cascudo, para mencionar somente alguns. De um lado, a grandiosidade luminosa da criação, do outro, o lado obscuro e pequeno de seu criador. A partir de então, outros problemas se desdobram: a dimensão moral deve se sobrepor à dimensão artística, estética e histórica? se não devemos consumir essa ou aquela obra por questões morais, quem pode determinar seu julgamento?

Ler ou não ler aquele livro cujo autor (ou autora) cometeu atos (inclusive os verbais) preconceituosos e discriminatórios? Assistir ou não àquela peça ou filme de cuja autora (ou autor) se sabe uma ignomínia? Como ouvir aquela canção ou sinfonia de quem tem o nome manchado por uma mácula moral?

Fazendo, pois, um paralelo com o dilema discutido por Claire Dederer, adapto toda essa inquietação para a discussão sobre o humor, em questões que podem ser ditas nos seguintes termos: o humorista deve ser julgado pelo teor ético de suas piadas e não pela habilidade de fazer humor? O que muita gente acha, de maneira simplista, que é “ser engraçado”, tem mais a ver com estratégias da linguagem cômica, então isso conta menos que o assunto sobre o qual se faz apelo ao riso? O humorista que conta piadas sexistas é uma pessoa sexista? Rir de uma parodia que rebaixa certa categoria profissional (pelo estereótipo, por exemplo) me faz ser contrária a tal categoria?

Como se vê, não há respostas fáceis, nem tudo se resolve tão simplesmente. Essa complexidade pode ser ilustrada com um pequeno exemplo. Conversando com uma doutoranda, ela me apresentou um meme, publicado em um perfil qualquer do Facebook. Abstenho-me de reproduzi-lo e restrinjo-me a descrevê-lo.

Publicado por ocasião do Dia dos Namorados, em 2018, o meme se compõe da imagem de um casal aparentemente apaixonado, cercado de flores, com a seguinte legenda: Eu amo cada pedacinho seu… O detalhe está no fato de que se trata do casal Elize e Marcos Matsunaga.

Em Racismo recreativo, o autor mostra como programas de TV aparentemente inofensivos disfarçam discriminação e injúria racial sob a roupagem do humor.

Esse exemplo pode ser observado em duas dimensões: a dimensão linguístico-discursiva e a dimensão ética. Em relação ao primeiro aspecto, independentemente de acharmos engraçado ou não, trata-se de um texto humorístico em função de procedimentos utilizados: a ironia marcada pela incongruência entre o imagético-verbal e o factual, cujo subentendido exige a compreensão dessa memória discursiva em particular: o conhecimento de que a esposa da foto matou e esquartejou (isto é, cortar em pedaços) o marido em 2012. E daí se desdobra o aspecto ético, envolto em problemas como: como devem se sentir os familiares do homem vendo esse meme? Tudo bem rir disso? Tudo bem produzir, divulgar e até mesmo analisar exemplos de humor pautados, mesmo que indiretamente, na miséria e desgraça de alguém?

No caso do humor, quanto a mim, estou cada vez mais propensa ao Não: não, nem tudo é risível ou deve ser tratado como objeto de riso, sobretudo um riso que ridiculariza, zomba, maltrata e ofende pessoas ou grupos identitários vulneráveis e oprimidos. Penso que se trata menos de ser “politicamente correto” ou contra a “liberdade de expressão”: trata-se mais de tentar não ser um e$Krot@.

Já em relação à distinção entre pessoa criadora e obra de criação, confesso que não resolvi os meus dilemas. Continuo lendo e apreciando, sim, Rachel de Queiroz, por exemplo. Para mim, “Memorial de Maria Moura” é um romance primoroso, ainda que eu saiba, amargamente, do fato de Rachel ter sido amiga de generais da ditadura militar como Castelo Branco. Vamos ver se Claire Dederer me ajuda quanto a esses dilemas. Por ora, fico com a epígrafe de Clarice Lispector que abre o livro: Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?

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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.