(Alyson Freire)
Gilles Deleuze, filósofo francês, conhecia bem a malícia e a má consciência que se escondem por trás da pergunta sobre para que serve a filosofia. Por isso, para expor o próprio ridículo da questão e as motivações mal disfarçadas do interlocutor, Deleuze afirmava que esta deveria ser respondida com certa rispidez: “a filosofia serve para prejudicar a tolice, fazer da tolice algo de vergonhoso”.
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Não é incomum que pesquisadores e professores de humanidades – ciências humanas, filosofia e artes – em todo o do mundo se defrontem com esse tipo de interrogação, seja no cotidiano institucional de seu trabalho seja nos espaços informais de sua sociabilidade. Dita pergunta não é uma trivialidade ou idiossincrasia sem maiores consequências, uma vez que ela habita consciências cujas posições de poder tornam possível a materialização de muitas frentes de ataques: cortes de orçamento para pesquisa e contratação, exclusão de editais de fomento, redução de horas/aula e da presença em currículos escolares, tentativas de cerceamento e de censuras a conceitos, tradições teóricas e trabalhos de pesquisa, revisão de métricas avaliativas de produtividade que ignoram especificidades da produção em humanidades. Especialmente nesses tempos de negacionismo e de avanço do populismo autoritário, convêm levar a sério a questão, descortinando nela mais do que sua suposta tolice e ignorância.
É preciso, portanto, compreender por que as humanidades incomodam, pois é justamente no desconforto que elas geram – sobretudo ao jogo dos poderes estabelecidos – que se encontra a resposta sobre para que servem. Nesse sentido, não é em sua suposta baixa rentabilidade e utilidade econômica que devemos procurar a resposta. Não. As humanidades, entre outras coisas, incomodam porque abalam os conformismos e as mistificações diversos que moldam nossa relação com o mundo, com os outros e conosco mesmos. O estudo e o ensino das humanidades, em seus mais diferentes ramos especializados e por meio das diferentes orientações que guiam suas construções teóricas, científicas, estéticas e filosóficas, perturbam o arranjo conformado da existência para exibi-lo em sua precariedade – em suma, em sua própria mistificação, seja ela moral, política, econômica, cultural ou histórica.
O estudo e o ensino das humanidades, em seus mais diferentes ramos especializados e por meio das diferentes orientações que guiam suas construções teóricas, científicas, estéticas e filosóficas, perturbam o arranjo conformado da existência para exibi-lo em sua precariedade – em suma, em sua própria mistificação, seja ela moral, política, econômica, cultural ou histórica.
Com esse gesto que busca desestabilizar as evidências do que somos, pensamos e fazemos – gesto inerentemente incômodo e indigesto aos comprometidos e conformados com a ordem das coisas – as humanidades sublinham alternativas e horizontes que podem fazer do mundo, dos indivíduos, das relações, das coletividades e das instituições algo diferente do que elas são ou dizem ser.
É esta potência de crítica e de imaginação, dirigida a expor e testar os limites e as possibilidades das formas vigentes e oficiais da vida, que incita tanto incômodo – de modo que a reação dos opositores não pode ser outra senão a da desqualificação, da restrição ou da cassação do direito de existir.
Para as humanidades, a crítica, o dissenso, a imaginação, a experimentação artística, a diversidade e a liberdade são ferramentas imprescindíveis. Por isso, a filósofa Martha Nussbaum sustentou que as democracias, para serem dignas desse nome, precisam das humanidades. Em ambas, cultivam-se e praticam-se competências e virtudes de íntima afinidade – condições mesmas para a existência e o fortalecimento recíproco.
Não é de se espantar que os ataques às humanidades ganhem força exatamente em momentos de degradação democrática. Portanto, assumir a defesa das humanidades, de uma maneira contundente e afirmativa de seu valor e contribuição, é uma tarefa ética e civilizatória: uma defesa das próprias “fibras fundamentais” que mantêm e renovam as democracias em sua relação indispensável com a existência de cidadãos e cidadãs capazes de compreender, intervir, modificar e experimentar o mundo – para construir uma vida que valha a pena ser vivida.
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Alyson Freire é professor do Instituto Federal de Ciência, tecnologia e Inovação do Rio Grande do Norte (IFRN) e sociólogo.









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