Com a cenografia de um diário pessoal, o livro traz textos que mostram claramente como Maíra faz da escrita uma forma de ser e viver.

Na escrita de si

(Cellina Muniz)

A escritora espanhola Rosa Montero, uma das autoras participantes da edição deste ano da Flip, afirma em seu livro A louca da casa: “Não podia falar da literatura sem falar da vida”. E lá na ficha catalográfica do livro, a indicação do gênero discursivo acena para uma imprecisão cada vez mais explícita: autoficção.

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Então penso em Conceição Evaristo e sua escrevivência (“um corpo que não é apenas descrito, mas vivido”). Penso em Elena Ferranti e sua água-marinha (“era um objeto verdadeiro, e muito, e, no entanto, não havia nada mais flutuante dentro da minha cabeça”). Seja em “Becos da Memória”, seja em “As margens e o ditado”, essas autoras, dentre tantos outros nomes, nos dão o que pensar sobre os limites imprecisos entre a narrativa da vida e a narrativa da obra. Ou, em outras palavras: a obra como um reflexo do que é e não é o eu vivente.

Essas ponderações, no entanto, não datam de hoje. Em um ensaio de 1983 intitulado “A escrita de si”, Michel Foucault toma como exemplo cadernos de anotação e correspondências dos primeiros séculos da era cristã justamente para mostrar como a escrita pode ser considerada como uma técnica de vida. Atanásio de Alexandria, por exemplo, lá no século IV, já dizia: “Consideremos e escrevamos, cada um, as ações e movimentos da alma”. Esse é um dos casos utilizados por Foucault para ilustrar como a escrita também pode ser considerada uma tecnologia que, junto aos saberes e poderes difusos na sociedade, constitui-nos, de maneira inquieta e incessante, em nossa subjetividade.

Tenho tido muito prazer em abrir uma página branca no word e criar histórias com um tiquinho de realidade.

Maíra Castanheiro

Assim, ao tempo em que somos sujeitos agentes e objeto, produtores e produtos de diferentes formas de saber e poder, também vamos nos construindo à medida que, por meio da escrita, colocamo-nos em face de nós mesmos. Transformando uma experiência ancestral e/ou pessoal em conto, novela, romance, por exemplo.  Ou seja: a subjetividade também se vai fazendo pela escrita não só dos cadernos secretos ou cartas íntimas, mas também por meio de textos literários com roupagem de ficção. Ou autoficção.

Rosa, Conceição e Elena, cada uma à sua maneira, vivenciam essa relação do eu consigo mesmo por meio da escrita. E é o que faz também outra autora genial, ainda que tenha menos visibilidade e seja menos celebrada: Maíra Castanheiro.

Maíra é muitas. Mulher, mãe, ativista, historiadora, professora, tradutora… Maíra é escritora. Mas, principalmente, Maíra mira viver a vida como obra de arte. No caso, a arte da escrita literária. E a vive assim. E só ela sabe da dor e delícia de viver da/a escrita.

Uma prova é seu livro (um dos seis publicados) Diário de uma mãeconheira (Porto Alegre, Editora Moluscomix, 2021). Com a cenografia de um diário pessoal publicado primeiramente na rede facebook, o livro traz uma seleção feita por Santiago Fontoura de textos que mostram claramente como Maíra faz da escrita uma forma de ser e viver.

A mim, a escrita de Maíra conquista não só porque simpatizo com sua condição feminista, anarquista, militante (e quase também com a de “ateia não praticante” rsrs), ou porque rio e choro com suas histórias, mas sobretudo pelo estilo de sua linguagem fluida, sedutoramente musical, numa escrita atravessada por múltiplas referências e que, sem ser solene nem rasa, reflete sobre si e dá voz a reflexões que podem ser nossas também, em nosso tempo, nosso mundo, nossa vida.

Como nesse trecho (Floripa, 3 de maio de 2020, 3h37), no qual Maíra reflete:

Hoje pensei o quanto estou gostando da vida que estou levando. Tive medo de pensar isso alto, afinal o mundo tá aí, o caos. Mas estou gostando de ter esse tempo e dedicá-lo a mim. E como tempo ocupar-se de si! Sócrates tinha razão. (…) Eu continuo com a vontade de seguir e sigo, me sinto cada dia mais equilibrada. Sinto meu couro curtido devido às tantas porradas da vida.  As mãos calejadas de tanto escrever a própria história. Os pés rachados de tanto caminhar pelos próprios trilhos. Meu coração, que bate mais que a polícia e apanha mais que bandido, ainda busca na razão aprender sobre emoção.

Acho irônico que por dois mil anos o nosso tempo histórico foi datado como A. C. – Antes de Cristo, e D.C. – Depois de Cristo. Agora, não mudou muito, dois mil anos depois de Cristo, chega um vírus pra mudar todo nosso tempo. Todos nós já sentimos nossa vida e tempo A.C – Antes do Corona, e como será o D.C – Depois do Corona. Ao som desta velha nova banda, AC/DC, danço like a rolling stones.

Então percebo que, na leitura de Maíra, eu – também autora, também narradora – vou me constituindo também como eu leitora. Isso vai me fazendo eu pessoa. E vou me fazendo, cada vez mais, como ser literário, experienciando, reafirmando hábito e tomando posição, tomando gosto por isso, tomando distância daquilo…Do tipo que, como a mana Maíra, sabe que o estar sendo escritor não se reduz às vitrines ou listas dos mais vendidos.

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Com todo nosso respeito a Rosa, Conceição e Elena, grandes escritoras…

Um estar sendo que, como a mana Maíra narra tão bem, sabe que não há como distinguir vida e escrita.

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@mairacastanheiro

Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.