Para Florestan Fernandes, o arcaico e o moderno nem sempre entram em choque. Estabelecem-se várias espécies de fusões, que traduzem os diferentes graus de identificação dos homens com a herança tradicional e com a modernização. (Foto: montagem com imagem de Florestan Fernandes e a capa de um de seus livros)

A modernização do arcaico, a arcaização do moderno

(Lucas Trindade)

O que é, afinal, o pensamento social e político brasileiro? É tanto um objeto como um campo maduro de pesquisa nas ciências sociais no Brasil. Para utilizar a definição de Gildo Marçal Brandão, um importante intelectual desse campo de estudos, o pensamento social e político brasileiro caracteriza uma área marcada pela “superposição” de múltiplas abordagens disciplinares (ciências sociais, história, literatura, artes etc.) que faz “da reflexão dos seus ‘clássicos’ […] o instrumento para interpelar inusitadamente a sociedade e a história que os produz” (G. M. Brandão).

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Em uma frase, é uma área que pensa o pensamento que pensou a experiência social brasileira. Pensamento que não é só expressão complexa de contextos histórico-sociais particulares, mas que também se torna força prática e deixa marcas profundas na realidade social. Pensamento que talha a maneira como o Brasil é na prática – em suas lutas, em suas instituições, em seus dilemas, em suas potencialidades.

Para sermos bem sintéticos, o campo do pensamento social e político brasileiro se pergunta e busca dar respostas à seguinte questão: como o Brasil se pensou e se pensa e como esse modo de pensar e dizer o que somos produziu e produz o que a gente é?

Um tema que marca profundamente o pensamento social e político brasileiro é o peso do passado ou o peso do atraso em nossa formação social. Essa imagem tende a conformar uma visão dual ao pensar o Brasil. Como se nesse país existisse um polo atrasado e um polo avançado, um tradicional e um moderno, um voltado para o passado e outro voltado para o futuro, polos estes sem uma clara relação entre si, a não ser o fato de que o polo atrasado atrapalharia a nossa marcha triunfante para o futuro.

Uma contribuição decisiva de Florestan Fernandes para a teoria social produzida no Brasil é justamente a desestabilização e crítica desse imaginário do atraso tão enraizado no pensamento social e político brasileiro. Em sua obra A Revolução Burguesa no Brasil, cuja primeira edição foi publicada há exatos 50 anos, um conceito central para a crítica desse imaginário é o de dupla articulação, atributo estrutural do capitalismo dependente.

Uma “economia capitalista… duplamente articulada” é definida nos seguintes termos: “internamente, através da articulação do setor arcaico ao setor moderno […]; externamente, através da articulação do complexo econômico agrário-exportador às economias capitalistas centrais.”

Apesar disso, não restam dúvidas a Florestan de que no Brasil consolida-se uma sociedade moderna e capitalista, mas uma “economia de mercado capitalista que, ao crescer, corre o risco de se tornar ainda mais dependente”. Isso porque o seu próprio eixo dinamizador e modernizador – a dinâmica primário-exportadora – é o mesmo eixo reprodutor das relações de dependência.

Como sintetiza em passagem lapidar de texto de 1967: “o arcaico e o moderno nem sempre entram em choque decisivo, que termine com a eliminação das estruturas repudiadas; estabelecem-se várias espécies de fusões e de composições, que traduzem os diferentes graus de identificação dos homens com a herança tradicional e com a modernização”. Em texto de 1971, Fernandes escreve sobre os processos de “modernização do arcaico” e “arcaização do moderno” que caracterizam o capitalismo dependente.

Não há passado, atraso, arcaísmo, tradição que se reproduza de modo inercial. Se o arcaico se torna presente e futuro, é porque ele está articulado ao moderno, alimenta-o, define-o.

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(Esse texto é um recorte e adaptação feito pelo autor da primeira seção do texto “A originalidade do conceito de capitalismo dependente em Florestan Fernandes”, que em breve será publicado no Dossiê “O pensamento de Florestan Fernandes permanece vivo!”, revista Especiaria.)

Referências

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Lucas Trindade é sociólogo e professor do Instituto Humanitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte