(Foto: Pedro França / Agência Senado)

Em defesa da moral

(Gentil Lúcio)

A motivação para a escrita desta coluna surgiu de minha inquietação quando comecei a estudar a temática da moralidade, ainda no início da minha graduação em Ciências Sociais. A princípio, eu tinha a impressão de que a moralidade era um campo de estudos datado, sobre o qual pouco ou quase nada de novo poderia ser dito ou escrito. Parecia-me que a Antropologia e, sobretudo, a Sociologia deveriam se preocupar mais com o Estado, com as desigualdades ou com a política. A moralidade, pensava equivocadamente, seria objeto próprio de outras disciplinas, como a Filosofia. Não podia estar mais enganado. Não há como pensar em Estado, em desigualdades ou em política sem considerar a importância da moralidade para esses fenômenos. Tentarei explicar o porquê.

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Pode-se compreender a moralidade, e adianto, de forma equivocada, como um elemento negativo, relacionada a preconceitos ou a uma perspectiva não liberal das relações sociais. Pensar assim é incorrer no erro de confundir a moralidade, fenômeno inescapável da vida social, com o moralismo, prática social de julgar os outros, muitas vezes de forma hipócrita, com base em padrões próprios de um indivíduo ou de um grupo de pessoas. As Ciências Sociais se preocupam mais com o primeiro aspecto desse fenômeno. A moralidade, compreendida como valores que, para alguns autores, confundem-se inclusive com as normas de uma comunidade, emerge das relações sociais e é sempre situada histórica e geograficamente. Por isso, o mais adequado seria falar em “moralidades”.

Vamos contextualizar. O senso de dignidade, por exemplo, que as pessoas têm em relação a alguns direitos é também uma questão moral. Para alguns autores, a ideia de liberdade individual, como elemento primordial, traça uma fronteira a qual, inclusive, o Estado não poderia ultrapassar. Já para outros, a ideia de igualdade e senso de fraternidade seriam valores que o Estado deveria tutelar, protegendo a comunidade do espírito egoísta a agonístico do individualismo e da competição por recursos.

De modo geral, quando falamos em moralidade do ponto de vista científico, estamos nos referindo a um fenômeno pelo qual algumas práticas e valores são consolidados como mais elevadas que outras. A moralidade, assim, pode se confundir com o próprio senso de justiça de uma sociedade, mesmo que ele não tenha sido codificado em leis escritas. Nesta perspectiva, ela pode ser entendida como um conjunto de códigos, valores e normas que permitem a organização e coesão de uma comunidade, sendo também fundamental para compreender dinâmicas de poder. Em consequência, ela é um aspecto amplo da vida social e atravessa quase todas as relações humanas.

Nas Ciências Sociais, diferentemente da Filosofia, o estudo da moralidade não busca tão somente a justificação das ações individuais, tampouco constitui um recurso analítico ultrapassado, como cheguei a pensar em dado momento de minha trajetória acadêmica. Pelo contrário: ela possibilita compreender grande parte das razões que fundamentam consensos e conflitos sociais. Nessa perspectiva, a cientista ou o cientista social que decidir abrir mão da análise da moralidade em seus estudos corre o risco de cometer um grave equívoco.

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Gentil Lúcio é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN (PPGCS).