(Cellina Muniz)
Eu, você, nós, amantes dos livros, sabemos que a vida cultural e intelectual de uma cidade também passa, necessariamente, pelas livrarias. Mais do que um simples ponto comercial de compra e venda de livros e impressos afins, as livrarias são como caldeirões mágicos em que borbulham temperos diversos de saberes e práticas. Em torno desse incrível objeto chamado livro, encontros, afetos, planos e ações se constroem e se fomentam nesse espaço tão especial de convivência e sociabilidade que é a livraria.
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Quando não havia internet e e-books, certamente essa condição era ainda mais intensa e talvez Jorge Carrión, em um ensaio intitulado “Esta interrogação que chamamos de livraria”, consiga traduzi-la em parte:
As boas livrarias são perguntas sem resposta. São lugares que provocam intelectualmente, que cifram enigmas, que surpreendem e propõem desafios, que hipnotizam com essa melodia – ou cacofonia –, que criam a luz e as sombras, as prateleiras, as escadas, as capas, a porta ao abrir, um guarda-chuva que se fecha, movimentos de cabeça que dizem “oi” ou “tchau”, as pessoas em movimento.
Em qualquer cidade de médio e grande porte, sebos e livrarias são pontes para encontros reais e “invisíveis” entre autores, editores e leitores. Uma nave que nos possibilita sair do nosso cercadinho e alçar voo por paisagens distantes. Do pulinho corriqueiro para dar uma rápida espiada até as ocasiões especiais como lançamentos, palestras, saraus, encontros de clubes de leitura e outros, os desdobramentos desses encontros que têm como palco a livraria são incomensuráveis, mas certamente se pode afirmar que são também um deleite para a alma.

Em Natal (RN), antes das redes de lojas em shoppings e do comércio digital, as livrarias de rua movimentavam intensamente a vida cultural e social na cidade, numa tradição local que remete a exemplos como a livraria Clima e a livraria Universitária. Mas, muito antes, um nome é imprescindível nessa história: a Cosmopolita, a livraria de Fortunato Rufino Aranha (João Pessoa-PB, 1862 – Natal-RN, 1947). E um detalhe muito importante neste Brasil estruturalmente racista: Fortunato era um homem negro.
Segundo o historiador Anderson Tavares de Lyra, em matéria da revista Bizzz assinada por Rafael Barbosa (2017), a vida intelectual de Fortunato Aranha começou ainda em Macaíba, quando, já comerciante, aproximou-se do Grêmio Literário Macaibense e se uniu a figuras como Luiz Fernandes, Elóy de Souza, Henrique Castriciano… Foi no Grêmio que Fortunato assumiu a função de bibliotecário, por meio da qual criaria as bases de seu ofício futuro. Vindo para Natal, tornou-se o primeiro livreiro da cidade ao abrir a Cosmopolita entre 1897 e 1898. Conforme relatou João Amorim Guimarães em seu livro de memórias de 1952, “Natal do meu tempo”:
Seria o primeiro livreiro da cidade, mantendo, já naquele tempo um estoque bem farto de obras escolhidas. Mas dentro de tão grande biblioteca, Fortunato não seria somente o negociante de livros, não. Seria também o principal leitor, o fidalgo estudioso de todas as obras didáticas do seu comércio, o principal leitor de todos os romances, de toda a infinidade de livros que enchiam aquelas enormes estantes de sua livraria, lendo sem cessar, ilustrando o espírito, alegrando a alma.
Fortunato Aranha, que chegaria a ocupar também o cargo de vice-presidente da intendência (uma espécie de vice-prefeito), foi figura fundamental para o letramento literário na cidade. A Cosmopolita, como primeira livraria potiguar, foi responsável direta pela difusão e incremento das letras na pacata cidade de então, conforme assinala a historiadora Maiara Juliana Gonçalves da Silva:
A Cosmopolita, como única livraria da cidade, passou a ser um dos principais centros de informações referentes à literatura local, nacional e internacional. Nesse ambiente, os homens de letras da cidade iam adquirir obras literárias ou assinar periódicos. (…) motivados, provavelmente, pela possibilidade de fomentar tertúlias literárias das quais participava o próprio proprietário do estabelecimento.
Fico então imaginando detalhes deliciosos: como seriam essas tertúlias? não haveria também “mulheres de letras” entre seus habitués? quais seriam as listas dos títulos mais vendidos a cada ano na Cosmopolita? que mundo seria aquele condensado pela livraria de Fortunato Aranha?

Não à toa, um dos filhos do livreiro Fortunato Aranha se firmou como poeta, publicando os livros “César Bórgia” (de 1918) e “Nevroses” (de 1919), no mais legítimo estilo parnasiano da época. Se, como propõe o linguista e analista do discurso Dominique Maingueneau, não há como considerar a constituição de uma obra literária sem considerar seus ritos genéticos e seu contexto bio/gráfico, não admira que a condição de filho do livreiro, mas, acima de tudo, do leitor Fortunato Aranha, tenha sido fundamental na formação do poeta Murillo Aranha.
Viva as livrarias de ontem e sempre! Viva a livraria Cosmopolita de Fortunato Aranha, responsável direta pelo desenvolvimento das letras na capital potiguar. Que seu nome seja sempre lembrado!
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