Eu, você, nós, amantes dos livros, sabemos que a vida cultural e intelectual de uma cidade também passa, necessariamente, pelas livrarias. Mais do que um simples ponto comercial de compra e venda de livros e impressos afins, as livrarias são como caldeirões mágicos em que borbulham temperos diversos de saberes e práticas. Em torno desse incrível objeto chamado livro, encontros, afetos, planos e ações se constroem e se fomentam nesse espaço tão especial de convivência e sociabilidade que é a livraria.
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Quando não havia internet e e-books, certamente essa condição era ainda mais intensa e talvez Jorge Carrión, em um ensaio intitulado “Esta interrogação que chamamos de livraria”, consiga traduzi-la em parte:
As boas livrarias são perguntas sem resposta. São lugares que provocam intelectualmente, que cifram enigmas, que surpreendem e propõem desafios, que hipnotizam com essa melodia – ou cacofonia –, que criam a luz e as sombras, as prateleiras, as escadas, as capas, a porta ao abrir, um guarda-chuva que se fecha, movimentos de cabeça que dizem “oi” ou “tchau”, as pessoas em movimento.
Em qualquer cidade de médio e grande porte, sebos e livrarias são pontes para encontros reais e “invisíveis” entre autores, editores e leitores. Uma nave que nos possibilita sair do nosso cercadinho e alçar voo por paisagens distantes. Do pulinho corriqueiro para dar uma rápida espiada até as ocasiões especiais como lançamentos, palestras, saraus, encontros de clubes de leitura e outros, os desdobramentos desses encontros que têm como palco a livraria são incomensuráveis, mas certamente se pode afirmar que são também um deleite para a alma.
À direita, Fortunato Aranha, ao lado de Antônio de Sousa que, como escritor, assinava como Policarpo Feitosa. (Fonte Revista Bizz ano 4, número 52.)
Em Natal (RN), antes das redes de lojas em shoppings e do comércio digital, as livrarias de rua movimentavam intensamente a vida cultural e social na cidade, numa tradição local que remete a exemplos como a livraria Clima e a livraria Universitária. Mas, muito antes, um nome é imprescindível nessa história: a Cosmopolita, a livraria de Fortunato Rufino Aranha (João Pessoa-PB, 1862 – Natal-RN, 1947). E um detalhe muito importante neste Brasil estruturalmente racista: Fortunato era um homem negro.
Segundo o historiador Anderson Tavares de Lyra, em matéria da revista Bizzz assinada por Rafael Barbosa (2017), a vida intelectual de Fortunato Aranha começou ainda em Macaíba, quando, já comerciante, aproximou-se do Grêmio Literário Macaibense e se uniu a figuras como Luiz Fernandes, Elóy de Souza, Henrique Castriciano… Foi no Grêmio que Fortunato assumiu a função de bibliotecário, por meio da qual criaria as bases de seu ofício futuro. Vindo para Natal, tornou-se o primeiro livreiro da cidade ao abrir a Cosmopolita entre 1897 e 1898. Conforme relatou João Amorim Guimarães em seu livro de memórias de 1952, “Natal do meu tempo”:
Seria o primeiro livreiro da cidade, mantendo, já naquele tempo um estoque bem farto de obras escolhidas. Mas dentro de tão grande biblioteca, Fortunato não seria somente o negociante de livros, não. Seria também o principal leitor, o fidalgo estudioso de todas as obras didáticas do seu comércio, o principal leitor de todos os romances, de toda a infinidade de livros que enchiam aquelas enormes estantes de sua livraria, lendo sem cessar, ilustrando o espírito, alegrando a alma.
Fortunato Aranha, que chegaria a ocupar também o cargo de vice-presidente da intendência (uma espécie de vice-prefeito), foi figura fundamental para o letramento literário na cidade. A Cosmopolita, como primeira livraria potiguar, foi responsável direta pela difusão e incremento das letras na pacata cidade de então, conforme assinala a historiadora Maiara Juliana Gonçalves da Silva:
A Cosmopolita, como única livraria da cidade, passou a ser um dos principais centros de informações referentes à literatura local, nacional e internacional. Nesse ambiente, os homens de letras da cidade iam adquirir obras literárias ou assinar periódicos. (…) motivados, provavelmente, pela possibilidade de fomentar tertúlias literárias das quais participava o próprio proprietário do estabelecimento.
Fico então imaginando detalhes deliciosos: como seriam essas tertúlias? não haveria também “mulheres de letras” entre seus habitués? quais seriam as listas dos títulos mais vendidos a cada ano na Cosmopolita? que mundo seria aquele condensado pela livraria de Fortunato Aranha?

Murillo Aranha e a capa de seu livro publicado no Rio de Janeiro pela Livraria Leite Ribeiro & Maurilo em 1919. (Foto: literaturapotiguar.blogspot.com)
Não à toa, um dos filhos do livreiro Fortunato Aranha se firmou como poeta, publicando os livros “César Bórgia” (de 1918) e “Nevroses” (de 1919), no mais legítimo estilo parnasiano da época. Se, como propõe o linguista e analista do discurso Dominique Maingueneau, não há como considerar a constituição de uma obra literária sem considerar seus ritos genéticos e seu contexto bio/gráfico, não admira que a condição de filho do livreiro, mas, acima de tudo, do leitor Fortunato Aranha, tenha sido fundamental na formação do poeta Murillo Aranha.
Viva as livrarias de ontem e sempre! Viva a livraria Cosmopolita de Fortunato Aranha, responsável direta pelo desenvolvimento das letras na capital potiguar. Que seu nome seja sempre lembrado!
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