Diferentemente da concepção biopolítica, a necroalgoritmização atua na direção de um “fazer morrer”. (Imagem: Recorte da tela Operários, de Tarsila do Amaral)

Ampliando desigualdades históricas

(Cellina Muniz)

No dia 19 de setembro de 2025, no auditório da Escola de Ciência e Tecnologia da UFRN, tivemos a grata alegria de poder ver e ouvir Júlio César Araújo, professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador de produtividade do CNPq. Na ocasião, o professor Júlio César lançou seu novo livro “Necroalgoritimização: notas para definir o racismo algorítmico” (Campinas, SP: Mercado de Letras, 2025).

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Como o próprio nome sugere, o estudo busca descrever, analisar e denunciar formas pelas quais a algoritmização crescente do mundo digital está a serviço de um poder de morte e de como a tecnologia funciona como instrumento de exclusão. Com base num arcabouço teórico amplo, com autores de peso de uma perspectiva epistemológica decolonial (Frantz Fanon, Néstor García-Canclini e Achile Mbembe, por exemplo), o professor mostra como essa exclusão movida pelo projeto neoliberal encabeçado pelas Big Techs atua em frentes interseccionais, mobilizando novas formas de poder e de violência sobre segmentos historicamente perseguidos e vulneráveis: povos negros, povos indígenas, mulheres, idosos, crianças, pessoas LGBTQIAPN+ e outros, como pessoas com necessidades especiais específicas.

A necroalgoritmização é, portanto, “um processo simbólico e literal de morte em vida, especialmente para pessoas de comunidades minorizadas. Assim como a guilhotina inova nas tecnologias de assassinato, a necroalgoritmização surge como uma ferramenta moderna que, sob a fachada da tecnologia e do progresso, alimenta a desumanização e marginalização de pessoas vulneráveis na sociedade contemporânea”.

Assim, diferentemente de uma concepção biopolítica, de viés foucaultiano, em que diferentes dispositivos estariam a serviço de uma governamentalidade para um “fazer viver”, a necroalgoritmização atua na direção de um “fazer morrer”.

O livro do professor Júlio César é um convite a uma reflexão teórica consistente e a uma prática política e eticamente crítica. (Foto: Cellina Muniz / Cedida)

Um simples comando de busca no Google, por exemplo, pode evidenciar como os algoritmos tendem tanto a invisibilizar como a representar de maneiras pejorativamente cruéis esses grupos identitários, reproduzindo e ampliando desigualdades históricas. Sem falar em outros mecanismos de predição e de intervenção pública, ligados, por exemplo, aos sistemas de saúde e de polícia. Não à toa, ecoando autores como Tapu e Fa´agau, o professor Júlio César indaga se o desenvolvimento e aplicação dessas tecnologias de IA e de processamento de dados não representariam, antes, um “novo colonizador”, atualizando novas formas de controle e de opressão.

Somente a conscientização dessas formas de controle e opressão por meio de uma educação midiática pautada no letramento algorítmico permitirá modos de resistência a esses necropoderes. Conforme ressalta Júlio César, “esse modelo educacional capacita os cidadãos a entender as repercussões das tecnologias que influenciam suas vidas, ao mesmo tempo que os empodera a resistir ao processo de apagamento imposto pelos algoritmos, em particular aos grupos historicamente marginalizados” e as tecnologias digitais, assim, “transcendem o caráter de meras ferramentas técnicas, constituindo-se como estratégias políticas e culturais de resistência”.

O livro do professor Júlio César é, portanto, um convite a uma reflexão teórica consistente e a uma prática política e eticamente crítica, reflexão e prática engajadas na direção de um mundo menos desumano e mais diverso. Mais que importante, uma leitura necessária.

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