Entrevista foi concedida por uma plataforma digital (Foto: Nossa Ciência)

Colecionando ossos e conquistas

(Redação Nossa Ciência)

Aos 39 anos, a paleontóloga Aline Marcele Ghilardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e bolsista de produtividade do CNPq, é uma das vozes mais ativas na divulgação científica do país. Coordena o Laboratório de Paleontologia e Paleoecologia (LPP) e orienta mais de 20 estudantes em diferentes níveis de formação.

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Criadora da rede “Colecionadores de Ossos”, que tem um canal no Youtube com mais de 70 mil inscritos, Ghilardi alia produção acadêmica de ponta a uma comunicação acessível, o que a tornou referência nacional e até personagem de um verbete na Wikipédia.

Em entrevista concedida ao Portal Nossa Ciência, a paleontóloga falou sobre a condição da mulher na ciência, sobre a produção científica de pesquisadores do Nordeste e as assimetrias de oportunidades com o eixo Sudeste-Sul, sobre suas descobertas paleontológicas e sobre sua paixão pela divulgação científica.

Entusiasta da importância da divulgação cientifica, para ela, quando um cientista se comunica com a sociedade, há um aspecto de visibilidade semelhante ao marketing — “quem é visto é lembrado”. Assim, ao falar frequentemente sobre paleontologia em uma linguagem acessível, é possível mostrar a importância da área não apenas à comunidade acadêmica, mas também ao público em geral.

A pesquisadora destacou ainda que esse diálogo horizontal é fundamental, tanto por ser um retorno necessário à sociedade — que financia pesquisas e salários — quanto por trazer benefícios concretos para a carreira dos cientistas, como maior alcance, possibilidade de financiamento e reconhecimento em debates públicos. Ela ressaltou, contudo, que nem todos os colegas se dedicam à divulgação, seja por falta de tempo ou de afinidade com esse tipo de comunicação, o que é compreensível. Outro motivo pode ser a falta de treinamento para essa prática na formação acadêmica tradicional. Ainda assim, acredita que todo pesquisador deveria buscar meios de tornar sua ciência acessível, seja diretamente ou por meio de parcerias com divulgadores.

Ao comentar sobre o tripé que sustenta a atividade acadêmica no Brasil — pesquisa, ensino e extensão —, a cientista afirmou considerar as três dimensões indissociáveis. Para ela, no entanto, o modelo brasileiro acaba sendo “quase desumano”, já que exige do pesquisador competência e produtividade em todas as áreas, sem permitir a possibilidade de focar em apenas uma, como ocorre em países como os Estados Unidos. “Deveria ser ofertado ao pesquisador querer se dedicar mais a uma área ou apenas a uma delas”, avaliou.

Apesar da crítica ao sistema, Ghilardi reconhece que sua trajetória foge à regra, já que se sente realizada ao atuar nos três campos. Ela compara essa relação a um banco de três pernas: se falta uma, o equilíbrio se perde. No ensino, explica, encontra não apenas satisfação pessoal, mas também inspiração para suas pesquisas. Muitas das perguntas que orientam seus estudos surgem diretamente das interações em sala de aula com os alunos, que representam a sociedade e seus interesses.

No mesmo ciclo, a pesquisadora defende que a pesquisa só se completa quando seus resultados retornam à sociedade. Para ela, ciência sem comunicação falha em seu propósito fundamental, que é aliviar as angústias humanas, responder a questionamentos e contribuir para o desenvolvimento coletivo. “Se a gente não constrói uma ciência que melhora a sociedade, que dá um retorno a ela, que traz desenvolvimento, então a gente não está fazendo uma boa ciência.”

Ciência: substantivo feminino

Nas geociências ainda é comum ouvir questionamentos sobre a capacidade física das mulheres para o trabalho de campo. (Foto: UFRN)

Ao falar sobre sua experiência como mulher na ciência, a pesquisadora não esconde as dificuldades enfrentadas ao longo da trajetória acadêmica. “Não é fácil”, resume. Durante o doutorado, relata, passou por situações de assédio moral e sexual que quase a fizeram abandonar não apenas a carreira, mas a própria vida.

A cientista também lembra que, embora homens também sofram assédio, as mulheres são muito mais atingidas. Apesar de avanços na paleontologia brasileira, onde há uma divisão equilibrada entre os gêneros, algumas subáreas — como a paleoicnologia, seu campo específico — continuam sendo dominadas por homens. Nas geociências, diz, ainda é comum ouvir comentários desestimulantes, questionamentos sobre a capacidade física das mulheres para o trabalho de campo e microagressões diárias que colocam em dúvida sua competência.

Além disso, Ghilardi destaca um peso adicional que recai sobre as cientistas: acolher e apoiar alunas vítimas de assédio dentro das instituições. “Meus colegas não precisam receber estudantes chorando na porta de suas salas porque foram assediadas sexualmente por um professor”, afirma. Segundo ela, envolver-se em denúncias e articulações internas para lidar com esses casos consome tempo e energia que poderiam ser dedicados à pesquisa. “Enquanto eu estou ajudando minhas alunas, meus colegas estão publicando e engordando seus currículos.”

Para a pesquisadora, a sobrecarga das mulheres na ciência é multifacetada. Além do trabalho acadêmico, muitas lidam com jornadas triplas ou quádruplas, cuidando de filhos, parentes ou da casa, enquanto os colegas homens têm tempo integral para se dedicar à pesquisa. Essa desigualdade, diz, impacta diretamente no desempenho e nas chances de conquistar bolsas e financiamentos. Ela mesma confessa que até agora abriu mão da maternidade para conseguir avançar na carreira.

Apesar das dificuldades, a paleontóloga vê avanços, como iniciativas recentes do CNPq para apoiar mães na ciência, e reforça a importância de ocupar espaços públicos e comunicar ciência também como forma de inspirar meninas a seguir carreira acadêmica. “É importante mostrar que elas podem estar aqui e ocupar esse espaço”, afirma, ressaltando, no entanto, que esse engajamento também exige tempo extra — um recurso que, para as cientistas, já é escasso.

Sem apoio na esquina do continente

A pesquisadora aponta a ausência de um sistema estadual eficiente de financiamento no RN como um dos maiores entraves. (Foto: Instagram)

Ao refletir sobre os desafios de fazer ciência a partir do Nordeste, a pesquisadora chama atenção para a exclusão regional ainda presente no cenário acadêmico brasileiro. Segundo ela, existe uma assimetria histórica que concentra eventos, investimentos e oportunidades principalmente no Sul e Sudeste, deixando outras regiões em posição periférica. Um exemplo simples, diz, é o custo de participar de congressos: “Uma passagem para o Sudeste é uma fortuna, um valor que quem já está lá não precisa pagar.”

Essa concentração, explica, perpetua um ciclo em que o financiamento se mantém nos mesmos centros, fortalecendo ainda mais pesquisadores e instituições dessas regiões. Enquanto isso, cientistas das outras regiões enfrentam dificuldades maiores para competir em editais e se inserir nas principais dinâmicas acadêmicas. A paleontóloga reconhece que iniciativas recentes de agências de fomento buscam corrigir parte dessas desigualdades, mas considera que os esforços ainda não acompanham o potencial e a força de trabalho jovem emergente fora do eixo Sul-Sudeste.

No caso específico do Rio Grande do Norte, onde atua desde 2019, a pesquisadora aponta a ausência de um sistema estadual eficiente de financiamento como um dos maiores entraves. Diferente de estados vizinhos como Ceará, Paraíba e Pernambuco, que avançaram na criação de mecanismos robustos de apoio à pesquisa, o RN permanece atrasado. Para a paleontóloga, isso limita o desenvolvimento científico local, apesar do empenho dos pesquisadores que, mesmo diante de restrições, conseguem produzir trabalhos de alto impacto e criar institutos de excelência.

Questionada sobre se a FAPERN, que é a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado, não cumpre sua função, Ghilardi respondeu: “Não cumpre a sua função, mas nem de perto! Como cientista do Rio Grande do Norte, como cientista potiguar, me sinto extremamente frustrada, envergonhada, perto dos meus colegas de outros estados, inclusive do Nordeste.”

Dinossauros podem apontar para o futuro

(ilustração: Palaeotaku / Wikimmedia Commons)

Ao ser indagada sobre o impacto dos achados paleontológicos na sociedade, a paleontóloga destacou que ele se manifesta em diversas camadas, desde a mais filosófica até a mais prática e econômica. Para a pesquisadora, a paleontologia ajuda a responder algumas das perguntas humanas mais fundamentais, aquelas que traduzem nossas angústias existenciais: “Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Qual é o nosso propósito?” Segundo a cientista, compreender o passado do planeta e da vida que nele coexistiu permite não apenas entender a origem da humanidade, mas também traçar paralelos com o futuro, refletindo sobre os riscos de mudanças climáticas e eventos de extinção em massa.

Ela explica que a paleontologia revela como o planeta Terra já passou por diversas configurações — com atmosferas, temperaturas e ecossistemas diferentes — e por episódios de grandes extinções, alguns causados por aquecimento extremo, outros por eventos fortuitos, como impactos de meteoritos. Esses exemplos ajudam a compreender os efeitos de ações humanas atuais sobre o clima e a biodiversidade, mostrando que o que aconteceu no passado pode indicar cenários futuros e alertar sobre os caminhos a serem seguidos para a preservação do planeta.

Além do impacto filosófico e ambiental, a pesquisadora enfatizou a aplicabilidade prática da paleontologia. Em pesquisas recentes de seu grupo, estudaram doenças que acometiam animais do passado, como osteomielite e câncer, oferecendo insights sobre a evolução dessas enfermidades e possibilidades de melhor compreensão de seu tratamento atualmente. Ela também citou como o estudo de pterossauros, animais voadores que dominaram os céus por mais de 100 milhões de anos, contribuiu para engenharia e tecnologia de voo. A anatomia dessas criaturas fornece segredos de eficiência que engenheiros estudam até hoje para desenvolver máquinas voadoras mais eficazes, seja em economia de combustível, velocidade ou desempenho aerodinâmico.

A paleontologia, segundo a cientista, também tem impactos econômicos diretos. Através da análise de fósseis é possível datar rochas sedimentares, o que auxilia na exploração de recursos minerais, incluindo petróleo e gás, mas também outros minerais usados pela sociedade contemporânea.

Eram os deuses astronautas?

Para além da ciência aplicada, a pesquisadora destacou a importância cultural e social da paleontologia. Fósseis têm sido objetos de fascínio e interpretação humana por milênios, inspirando lendas, histórias e mitos sobre dragões, grifos e gigantes. Segundo a paleontóloga, o contato com fósseis reforça o senso de pertencimento e orgulho das comunidades em relação ao território em que vivem, estimulando autoestima e interesse pela ciência.

Ela também ressaltou como descobertas paleontológicas podem movimentar a economia local. O retorno do fóssil Ubirajara à região do Araripe, por exemplo, trouxe visitantes e impulsionou o turismo, gerando renda e movimentando a economia de forma inesperada. Além disso, a paleontologia funciona como porta de entrada para a ciência, despertando curiosidade de crianças e jovens, e contribuindo para a formação de novos pesquisadores.

Para a pesquisadora, a disciplina está entrelaçada a múltiplos aspectos da vida social, econômica, científica e cultural: ela educa, inspira, gera conhecimento aplicável, promove identidade regional e fortalece autoestima. “A paleontologia está por todos os lados”, conclui a cientista, mostrando que suas descobertas vão muito além de museus e laboratórios, impactando de forma concreta e simbólica a vida das pessoas e das comunidades.

Conhecimento científico dos povos originários

Imagem aérea de um afloramento do Sítio Arqueológico. (Foto Aline Ghilardi.)

No último ano, a paleontóloga esteve envolvida em dois trabalhos de grande destaque, que ilustram tanto a profundidade quanto a diversidade de sua pesquisa. Um deles foi considerado um dos dez mais importantes de 2024, enquanto o outro, publicado recentemente, descreve um caso de osteomielite em dinossauros. Por ambos, conta a pesquisadora, ela tem um carinho especial, embora cada um traga desafios e significados distintos.

O estudo que figurou entre os dez mais importantes envolveu a associação entre pegadas de dinossauros e gravuras rupestres na Paraíba, um trabalho que reflete a linha de especialidade principal da paleontóloga: o estudo de pegadas de dinossauro. O sítio em questão, Serrote do Letreiro, já era conhecido, mas nunca havia recebido atenção detalhada para compreender o significado da associação entre pegadas e registros arqueológicos. Para aprofundar a análise, o grupo de pesquisa de Ghilardi convidou um arqueólogo, possibilitando uma abordagem interdisciplinar que uniu paleontologia e arqueologia.

A visita ao sítio permitiu mapear as gravuras e entender sua relação com as pegadas. A pesquisa concluiu que as gravuras estão preferencialmente próximas, mas nunca sobrepostas às pegadas, indicando uma sensibilidade e respeito pelo registro natural. O que se percebe é que essa associação não ocorreu apenas uma vez; diferentes eventos de registro ocorreram repetidamente ao longo do tempo, demonstrando a relevância cultural dessas marcas para as populações originárias. “As gravuras nunca são desenhadas sobre as pegadas, o que mostra uma sensibilidade em relação àquele registro. Não é só um desenho aleatório que estava próximo ali. Tem uma sensibilidade de estar próximo, mas nunca sobreposto” explica.

Outro aspecto fascinante é que muitas das gravuras imitam pegadas de aves, e como as aves são descendentes diretas dos dinossauros, a paleontóloga observa que essa percepção simbólica se aproxima do conhecimento científico moderno. A pesquisa recebeu grande destaque internacional, com cobertura em veículos como New York Times e Le Monde, e foi reconhecida como uma das descobertas mais importantes do ano. Para a pesquisadora, o trabalho também cumpre um papel de reparação histórica, destacando a conexão dos povos originários com a ciência e a compreensão de seus registros, que por muito tempo foram negligenciados na historiografia científica.

Meu paciente está morto há milhões de anos

O casal descobriu nos dinossauros uma infecção óssea que acomete animais e humanos atualmente. (Foto: Instagram)

O segundo trabalho, publicado recentemente, focou na osteomielite em dinossauros, e remonta à graduação da cientista, quando observou pela primeira vez estruturas ósseas incomuns em fósseis. Na época, ainda não tinha explicação para essas marcas, mas o material foi revisitado durante seu pós-doutorado com o companheiro e colega de pesquisa, Tito Aureliano Neto, especialista em tecidos fossilizados. Juntos, eles propuseram analisar o material em lâminas petrográficas para investigar a origem das anomalias.

O exame microscópico revelou que os ossos estavam super preservados e mineralizados, permitindo não apenas identificar o tipo de doença, mas também mapear sua evolução ao longo do desenvolvimento ósseo. Descobriram que se tratava de osteomielite, uma infecção óssea que acomete animais e humanos atualmente. Em termos simples, é uma doença causada por lesão ou infecção que, se não tratada, pode levar a complicações graves, incluindo amputações ou morte.

Surpreendentemente, a descrição de osteomielite no osso fossilizado foi inédita. Até então, a literatura médica tratava a doença apenas em tecidos moles. A descoberta gerou entusiasmo entre médicos e veterinários, que passaram a convidar a paleontóloga para congressos a fim de explicar os achados. Um aspecto interessante, segundo ela, é que o fóssil oferece vantagens para a visualização microscópica: o processo de fossilização mineraliza os ossos, tornando mais fácil observar as alterações do que em ossos contemporâneos tratados com corantes. Por outro lado, a pesquisa com humanos e animais vivos requer muito mais autorizações. “Meu paciente já está morto há milhões de anos, não vai reclamar se eu cortar o osso dele”, brinca.

Em continuidade à pesquisa, um novo estudo analisou vários espécimes do mesmo sítio, descobrindo que diferentes indivíduos apresentavam sinais de osteomielite. Isso levou os pesquisadores a considerar a possibilidade de uma epidemia local que teria afetado a população de dinossauros, causando a morte de vários indivíduos.

Para a cientista, ambos os trabalhos demonstram como a paleontologia pode gerar conhecimento científico inovador e impactar áreas diversas, da história humana à medicina e à compreensão de ecossistemas passados.

Ela destaca ainda que essas descobertas têm implicações sociais e educacionais: promovem a valorização do patrimônio cultural, despertam interesse de jovens pela ciência e fortalecem a autoestima das comunidades locais, especialmente quando descobertas são feitas em regiões periféricas ou historicamente marginalizadas, como o Nordeste.

No começo, era o verbo

Entre outras atividades, Aline e Tito tem um canal no Youtube com mais de 70 mil inscritos. (Foto: Instagram)

Para fechar a conversa, a paleontóloga descreveu o seu envolvimento com o tema da divulgação científica, ressaltando a importância de conectar ciência e sociedade, especialmente por meio das mídias digitais. O ponto de partida foi o blog “Colecionadores de Ossos”, criado em 2009, no primeiro ano do mestrado de Ghilardi. Inicialmente, explica a cientista, a ideia era apenas registrar seus estudos e descobertas de forma pessoal, como se escrevesse um diário para alguém. “Eu lia os artigos, achava tudo fascinante e curioso, e resolvi escrever como se estivesse contando para alguém. Só que blog é aberto, né? E comecei a descobrir que havia gente tão louca quanto eu, que lia o que eu escrevia. Para mim, isso foi fascinante, porque era encontrar alguém para conversar”, recorda.

O blog cresceu rapidamente e, ainda naquele ano, foi incorporado à iniciativa Science Blogs Brasil, financiada pela National Geographic, integrando uma rede de divulgadores de ciência que incluía nomes como Atila Yamarino. Para a pesquisadora, essa experiência marcou o início de um caminho que uniria pesquisa, ensino e comunicação científica.

À medida que as mídias evoluíram, o blog também precisou se transformar. Com a popularização do YouTube em 2011 e 2012, muitos divulgadores migraram parte de seu conteúdo para o formato audiovisual, e o canal homônimo “Colecionadores de Ossos” tornou-se o principal veículo de comunicação de Ghilardi. Hoje, com 71 mil inscritos, o canal permite que o público tenha uma experiência mais direta e interativa, aproximando-o do campo, dos fósseis e do entusiasmo pela paleontologia.

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