(Norton Rafael – Especial para o Portal Nossa Ciência)
O município de Tururu, há cerca de 120km de Fortaleza, é o lar da comunidade quilombola Conceição dos Caetanos, estabelecida no século XIX. As mais de 300 famílias que habitam o lugar compartilham muita coisa, como cultura, história, vivências. Mas outra característica recorrente da comunidade chamou a atenção de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC): a alta incidência de cânceres agressivos, principalmente de mama, o que levantou um questionamento sobre uma possível predisposição genética.
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O Grupo de Educação e Estudos Oncológicos (GEEON/UFC) ficou em alerta ao receber, em 2021, uma jovem paciente de Tururu encaminhada à universidade pela unidade de saúde local. A mulher tinha suspeita de câncer de mama e relatou que sua mãe e duas irmãs haviam morrido da doença. Intrigados pelo caso, os pesquisadores passaram a realizar análises de DNA e mapeamentos genéticos em mulheres da comunidade que chegavam na UFC com suspeita de câncer de mama, e observaram múltiplos casos agressivos da doença. Era uma situação fora do normal, segundo Luiz Gonzaga Porto Pinheiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas-Cirúrgicas da UFC e fundador do GEEON, em entrevista ao Portal Nossa Ciência.
Por meio da investigação do GEEON, um fator em comum foi observado nessas mulheres: mutações no BRCA1, gene que tem a função de identificar falhas genéticas nas células do organismo. “Quando nascemos com defeito nele, as células defeituosas evoluem para o câncer”, explica Pinheiro. A mutação no BRCA1 ganhou atenção mundial em 2013 e 2015 quando a atriz Angelina Jolie, portadora do gene defeituoso, retirou as mamas e os ovários como prevenção após descobrir uma alta chance de desenvolver a doença. Assim como as mulheres da comunidade Conceição do Caetano, Jolie viu diversas parentes perderem a vida para cânceres nos órgãos que escolheu remover, incluindo sua mãe.
Afrodescendentes de ascendência nigeriana

Os pesquisadores do GEEON passaram a hipotetizar que essa mutação causa o câncer de mama em mulheres jovens da comunidade, e que outros quilombos podem ter o mesmo problema. O grupo levou o caso à médica oncogeneticista Danielle Calheiros Campelo Maia, então pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM/UFC). Ao participar de um congresso em Chicago, nos Estados Unidos, e dialogar com pesquisadores estrangeiros, Maia percebeu que uma situação semelhante foi observada em mulheres afrodescendentes do país, principalmente aquelas de ascendência nigeriana. A médica levou a informação de volta aos membros do GEEON.
Mulheres jovens quilombolas têm 60% mais chances de desenvolver câncer de mama comparado a caucasianas, de acordo com Roberta Taiane Germano de Oliveira, pesquisadora do NPDM, em entrevista à UFCTV em 2022.
Em frente às observações, o GEEON decidiu entrar em ação para investigar se, realmente, a mutação BRCA1 pode estar por trás da alta incidência de câncer de mama nessa comunidade. “Para comprovarmos o fato, planejamos com pesquisadores da UFC uma pesquisa genética naquelas mulheres”, afirma Pinheiro.
Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica

O projeto, DNA Quilombola, foi um dos dois do GEEON aprovados pelo Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon), do Ministério da Saúde, no final de 2021. O financiamento de cerca de R$ 9,5 milhões é compartilhado com um projeto de epidemiologia molecular.
Desde então, o GEEON realiza levantamentos para conhecer melhor a realidade da população quilombola cearense. A pesquisa que teve início na Conceição dos Caetanos deve abranger todas as 183 comunidades quilombolas do Ceará espalhadas por 62 municípios. O plano é analisar o DNA de mulheres desses grupos com o objetivo de entender se a mutação no gene BRCA1 é a causa dos cânceres precoces e agressivos nessa população. A análise será feita pelo Laboratório de Citogenômica do Câncer, que faz parte do NPDM.
Outro fator que será considerado é o ambiental, já que muitos cânceres são resultado de genética e ambiente, segundo Oliveira. O DNA Quilombola avaliará questões como nutrição e produtos utilizados pela comunidade.
Bloqueios hormonais e cirurgias preventivas

A pesquisa é vital para entender melhor as possíveis causas de cânceres agressivos em mulheres de comunidades afrodescendentes, principalmente as quilombolas. “Os dados obtidos com a pesquisa vão nos orientar sobre medidas profiláticas e oferta de exames para diagnóstico precoce das mulheres afetadas pela mutação”, explica Pinheiro. Essas futuras medidas incluem o uso de bloqueios hormonais e a realização de cirurgias preventivas, como a retirada das mamas e a reconstrução por meio de próteses.
De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, o câncer que mais mata mulheres no Brasil é o de mama. Apesar disso, apenas 25% das mulheres entre 50 e 69 anos realizam a mamografia preventiva que pode identificar a doença em estágios iniciais, aumentando a chance de cura. O dado é da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O recomendado pela Organização Mundial da Saúde é que 70% das mulheres assintomáticas façam o exame. A falha em adotar medidas preventivas é uma das causas por trás do alto número de mortes pelo câncer de mama.
Mulheres quilombolas são especialmente vulneráveis a essa situação, mesmo sem contar com o fator genético. Essa população enfrenta desafios e limitações quanto à saúde pública, resultantes do racismo estrutural que permeia o Brasil e torna desigual o acesso à saúde institucionalizada.
O projeto DNA Quilombola quer mudar esse quadro. O objetivo é que a busca por mais entendimento acerca da genética do câncer em mulheres quilombolas leve a uma maior visibilidade das características únicas da comunidade, possibilitando a criação de medidas preventivas que atendam melhor às necessidades únicas dessa população.
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