A solidão pode afetar mesmo à pessoa que esteja no meio de uma multidão. (Foto: Alex Garcia)

Da solidão

(Rafael Lucas de Lima)

Há mais de dois milênios, consolidou-se entre nós o conceito, cuja formulação e expressão devemos a Aristóteles, de que somos animais políticos. Os fundamentos dessa concepção são evidentes por si mesmos; pois, a partir do momento em que nascemos, toda a nossa existência acontece dentro dos limites da pólis, de uma sociedade humana, com todo o aparato linguístico, político, moral, religioso, jurídico, econômico, etc., sobre o qual se fundamenta a vida humana. Por isso, chega mesmo a requerer um grande esforço de imaginação conceber um cenário em que a existência humana transcorresse fora dos limites político-culturais, pois não nos parece possível viver de modo completamente autônomo e autárquico, isto é, prescindindo da companhia de nossos semelhantes – muito embora Rousseau, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, afirme e sustente categoricamente o contrário: que o ser humano não é naturalmente um animal político, sendo a condição política uma degeneração da natureza humana.

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Apesar de tantas afirmações e demonstrações acerca do caráter político da existência humana, largamente conhecidas e discutidas por filósofos e outros estudiosos, parece-me curioso que quase nenhuma atenção tenha sido dada a um fenômeno tão comum e estreitamente ligado ao tipo de vida, gregário, dos seres humanos, a saber: a solidão.

Ocorre-me, neste momento em que escrevo, ser tomado por um imenso sentimento de solidão. O que me faz pensar que, através da experiência da solidão, podemos ter uma confirmação existencial mais evidente de que sejamos, de fato, animais políticos, animais que necessitam, por diversas razões, da companhia de nossos semelhantes. Na solidão, sentimos que estamos ligados a outros, dos quais sentimos falta.

Tenho em mente, aqui, um aspecto específico do sentimento de solidão, aquele que, para mim, corresponde à pior forma de solidão – aquela solidão que nos sobrevém não como uma punição que nos é imposta por outrem (como no caso dos prisioneiros, ou daqueles que caem em desgraça em relação aos círculos sociais nos quais transitam), mas aquela que simplesmente nos acomete, sem ser anunciada, e que tolhe nossos pensamentos e nossas ações, ainda que não haja obstáculos externos a nos limitar e que estejamos no meio de uma multidão. Essa solidão, que faz com que nossa própria companhia nos seja penosa, que nos faz desejar com ardor a companhia de alguém querido, desvela de modo originário o modo de ser gregário e, consequentemente, político do ser humano. São momentos como esses, em que a solidão faz-se presente em nosso ser, que nos fazem perceber, com uma angústia quase intransponível, que não bastamos a nós mesmos.

Que fazer quando o séquito da solidão – angústia, medo, tristeza… – apossou-se de nós? Não sabemos ao certo; ninguém jamais o soube; sentimo-nos simplesmente perdidos, desamparados. E qual de nós seria tão bem-aventurado a ponto de encontrar um remédio seguro contra a solidão? Não há, não pode haver tal remédio, posto que a causa do sentimento de solidão seja o fato mesmo de existirmos, e de existirmos politicamente. Por isso mesmo, talvez, muitos suicidas tenham visto na morte o único caminho possível para escapar de uma terrível solidão. Devemos censurá-los por não terem sido “fortes” o bastante para sobreviverem à sua solidão? Seja como for, não podemos mensurar a solidão de alguém.

Afirmar que o ser humano é um animal político é sustentar que a existência da nossa espécie dá-se por meio de diversos tipos de relações, que tecemos entre nós na vida em sociedade. Assim, somos animais políticos porque construímos e mantemos laços com outros indivíduos humanos. Quanto mais estreitos forem esses laços, e quanto maior for o afeto que neles imprimirmos e deles recebermos, mais forte tenderá a ser o sentimento de solidão que sentiremos quando desejarmos a presença daqueles indivíduos que tanto estimamos mas que, por qualquer razão, não a pudermos ter. Nesses momentos, nossa própria presença não nos basta, pois ela só faz sentido com outras presenças. Não há sucedâneo para um ser humano. Na ausência de uma resposta satisfatória à pergunta Que fazer quando me sentir acossado pela solidão?, talvez seja um bálsamo relembrar da certeza heracliteana da impermanência de todas as coisas, devir ao qual está submetido nosso próprio sentimento de solidão, de modo que possamos alimentar melhores expectativas para o futuro, em companhia daqueles que amamos.

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Rafael Lucas de Lima é professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE) e professor permanente do Mestrado Profissional em Filosofia (Prof-Filo/IFSertãoPE)