Na tensão entre práticas de poder e de liberdade, há um livro no meio do caminho. (Foto: Nossa Ciência)

A leitura como prática de si

(Cellina Muniz)

Dias desses, voltando de um Seminário e zanzando nesse não-lugar que é um aeroporto, resolvi dar uma olhada aleatória nos livros disponíveis em uma banca e um título logo me chamou a atenção: “Diário Estoico”: 366 lições sobre sabedoria, perseverança e a arte de viver, de autoria assinada por Ryan Holiday e Stephen Hanselman, com tradução de Maria Luiza X. de A. Borges (Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2022). Pelo “jeitão” do livro – isto é, não só pelo título, mas outros detalhes como as informações agregadas à contracapa e à orelha (outros títulos dos autores e trechos elogiosos de resenhas de jornais, por exemplo) – muita gente faria um muxoxo e pensaria de imediato: “autoajuda”.

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Mas decidi dar uma espiada. O que é designado geralmente como “autoajuda” situa-se entre as prateleiras de “não-ficção” e de “religiosos”, fatias do mercado livreiro que mais vendem. Segundo o site Poder360, em pesquisa coordenada pela Câmara Brasileira dos Livros e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, em 2024, essas duas categorias faturaram 28, 5% (não-ficção) e 15,6% (religiosos), o que se converte em muitos milhões de exemplares vendidos.

Sim, desde a antiguidade, muita gente continua procurando ajuda para saber viver.

Eis a grande questão que nos atravessa há milênios: como viver da melhor forma a vida?

Michel Foucault demonstrou, em suas pesquisas finais, como essa grande questão faz parte da subjetividade, compreendida não como um fundamento inato e imanente, mas como uma produção histórica resultante de vários jogos de verdade e de restrições, jogos esses articulados por saberes, poderes e tecnologias de diversas ordens que, afinal, incidem sobre as relações de cada indivíduo consigo mesmo. Tais relações se manifestam em diferentes práticas, as práticas de si, ou simplesmente “artes de viver”, diferentes procedimentos por meio dos quais os indivíduos experenciam e se constituem em sua subjetividade.

Um rápido exemplo: em um restaurante de São Paulo, diante da ampla divulgação midiática dos altos índices sobre casos de contaminação por metanol em bebidas adulteradas, divulgação essa que contou com relatos de especialistas (médicos) sobre sintomas (confusão mental, distorção na visão e até morte) e ações devidas diante de suspeitas (correr para uma unidade médica de emergência de preferência em até doze horas), refleti que o melhor seria ficar mesmo só com a água tônica e dispensar o gim.

Desse exemplo prosaico, volto para o livro, uma reatualização de como Sêneca, Marco Aurélio e Epicteto, dentre outros, formularam um conjunto de proposições e prescrições sobre as “artes de viver”. Eu tendo a desconfiar de fórmulas prontas e rasas de como viver a vida, mas, para além de qualquer juízo crítico sobre o livro, o que me chama a atenção é a permanência dessa “vontade de verdade” sobre como conhecer e cuidar melhor de si que se faz por meio da escrita e, sobretudo, da leitura. O ato de ler continua tendo papel vital como esse livro (e tantos outros) atesta: uma suposta possibilidade de alcançar o melhor de si pela meditação diária proporcionada por fragmentos de textos antigos.

Assim, os livros, em geral, podem ser uma tecnologia de como cada um de nós, pessoa no mundo, pode experienciar, tal como Foucault percebeu nas práticas de si formuladas pelos antigos, uma relação com os outros, uma relação com um discurso de verdade e uma relação com si mesmo.

Na tensão constante entre imposições e resistências, na tensão entre práticas de poder e de liberdade, na tensão em que vamos nos fazendo sujeitos incessantemente, há um livro no meio do caminho. Seja de autoajuda ou não.

Que leitura faz de você isso que você é?

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