A inferioridade ontológica toma corpo nas microviolências cotidianas e na pedagogia silenciosa da exclusão. (A Melancolia -1801, de Constance Marie Charpentier (1767-1849). Óleo sobre tela, 130 x 165 cm. Musée de Picardie, Amiens.)

Quando a opressão vira sentimento

(Alipio DeSousa Filho)

O filósofo inglês Mark Fisher escreveu, em seu livro Realismo capitalista, que “formas de opressão funcionam produzindo sentimentos de inferioridade ontológica”. Ali, ele passa breve sobre o assunto, mas deixa diversas indicações sobre como esses sentimentos constroem desqualificações e incapacitações das pessoas para o desempenho de papéis na vida social, causando-lhes depressão, infelicidade. Podendo até mesmo tornar-se adoecimento coletivos, “depressão coletiva”. Inúmeros são os exemplos que se poderia dar dos casos de indivíduos, grupos ou classes submetidos a opressões que interiorizam o sentimento de inferioridade ontológica. Que mais não é que o sentimento de desvalor por algo que lhes seriam inerente, intrínseco.

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É essa a experiência de muitos gays, lésbicas e transexuais, de pessoas negras, daqueles mais pobres, inferiorizados por sua condição de classe, das mulheres, em certas circunstâncias e contextos, de pessoas com limitações físicas, entre outros exemplos. O sentimento de inferioridade por algo que lhes seria inerente é a interiorização do desvalor por ser quem são, como são, como se, naquilo que são, algum atributo lhes constituíssem como inferiores. O sentimento de inferioridade ontológica é um sentimento de opressão, de se sentir oprimido, causado por formas de opressão, que, em nossas sociedades são muitas, e bom número delas invisíveis.

Nesses casos, a inferioridade ontológica toma corpo nas microviolências cotidianas e na pedagogia silenciosa da exclusão. Um jovem gay que aprende, desde criança, que sua forma de amar é objeto de escárnio; uma mulher negra que, desde a escola, é tratada como menos capaz; a pessoa trans que cresce sob o olhar que a reduz à “falta” ou à “anomalia”; o morador da periferia que internaliza a ideia de não pertencer aos espaços de prestígio; o pobre que se convence de que “esse mundo não é para ele”: todos aprendem, antes mesmo de compreender racionalmente, que seu lugar no mundo é o de menor valor. Esse aprendizado não é verbalizado, mas vivido – pela humilhação sistemática, pela ausência de reconhecimento, pela repetição das negativas sociais. Assim se forma o sentimento de inferioridade ontológica: não como opinião, mas como sensação íntima de defeito existencial, produzindo retração, autocensura, sofrimento psíquico e, muitas vezes, desistência da potência de agir.

Em Paulo Freire, também está o assunto da ideologia: o oprimido hospeda o opressor em seu próprio ser porque, desde tenra idade, cada um que nasce na sociedade, interioriza, assimila e reproduz estruturas, relações, ideias, categorias de pensamento da opressão aprendidas cotidianamente na linguagem, por meio dos significantes e significados institucionalizados; o que, numa palavra, desde Marx, chamamos ideologia.

Não existe interiorização dos sentimentos de inferioridade ontológica sem o trabalho da ideologia, isto é, sem a inculcação, interiorização, internalização da ideologia como ideias e representações que, simultaneamente produz e oculta a dominação social e política dos sistemas de sociedade sobre todos, mantendo invisíveis as formas de opressão social, as relações e instituições de poder e opressão. A interiorização do sentimento de inferioridade ontológica é, pois, a interiorização da ideologia como assimilação de ideias, crenças, padrões de valoração que inferiorizam certos indivíduos e grupos humanos, simultaneamente ao trabalho de valorização e promoção de outros indivíduos, grupos e classes.

Contra a internalização da ideologia de inferioridade ontológica, que se torna o sentimento destacado por Fisher, podemos opor a desideologização do indivíduo e da sociedade. Uma forma de cada um jogar para fora de si os sentimentos negativos, desqualificadores e despotencializadores da ideologia de inferiorização ou da ideologia tout court. A primeira vez que um pensador falou de desideologização foi nos termos da psicologia social do psicólogo espanhol Martín Baró. Como longamente tratei do assunto, no meu Tudo é construído! Tudo é Revogável: a teoria construcionista crítica nas ciências humanas (Cortez, 2017), a terapia da desideologização em Baró torna-se a realização prática daquilo que o educador brasileiro Paulo Freire chamou, em Pedagogia do oprimido, do ato do oprimido “vomitar o opressor” que ele hospeda em si. Em Paulo Freire, também está o assunto da ideologia: o oprimido hospeda o opressor em seu próprio ser porque, desde tenra idade, cada um que nasce na sociedade, interioriza, assimila e reproduz estruturas, relações, ideias, categorias de pensamento da opressão aprendidas cotidianamente na linguagem, por meio dos significantes e significados institucionalizados; o que, numa palavra, desde Marx, chamamos ideologia. Claro, o termo, hoje, é ignorado por muitos, incluindo marxistas; outros, principalmente na academia universitária, com o complexo de muitos em ser vanguarda, consideram o tema “ultrapassado”, alguns sequer admitem a ideologia como fenômeno existente na cultura, enquanto a ideologia faz a festa! Engolindo a sociedade inteira, submetida a todas as formas de alienação e opressão que, produzindo sentimentos de inferioridade ontológica (que só funciona produzindo concomitantemente a supervaloração de uns tantos), produz também os doentes da alma, do pensamento, despotencializados para a crítica e para a revolta e, pois, para a vida! Como escreveu Victor Hugo: “os que vivem são os que lutam!” Lutar para ser o que se é, com autonomia e potência, requer a desideologização de si!

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Alipio DeSousa Filho é professor do Instituto Humanitas UFRN