(Foto: Agência Brasil)

Por inteligências artificiais emancipatórias

O lançamento dos chatbots da startup chinesa DeepSeek e a queda de aproximadamente um trilhão de dólares que causou no preço das ações do setor da alta tecnologia estadunidense (afetando Big Techs como Google, Meta, Amazon e Microsoft) refletem uma disputa de lógicas de acumulação dentro do capitalismo globalizado, em sua fase contemporânea de colonialismo digital, assim como uma luta entre paradigmas de exercício e de gestão do poder tecnocolonial. Uma disputa que, ainda que intracapitalista e intracolonial, abre brechas para novos modos de apropriação tecnológica por parte de atores insurgentes engajados em lutas emancipatórias.

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O software de código aberto e os baixíssimos custos de desenvolvimento dos chatbots da DeepSeek – se comparados com os das megacorporações estadunidenses – foram elementos disruptivos no modo de acumulação que se tornou hegemônico no Vale do Silício. O despencar histórico das ações de Big Techs e de desenvolvedoras de chips estadunidenses, o nervosismo manifestado pelos gigantes dos modelos de inteligência artificial (IA) proprietários e pelo governo de Donald Trump, a perda de confiança do tal “mercado” e da sociedade em geral nas promessas das Big Techs em troca de investimentos públicos bilionários (se essa perda realmente levará o governo estadunidense a desinvestir nelas é outra questão, mas certamente a narrativa dos altos custos não se sustenta mais) revelam a intensidade do golpe que os atores centrais do colonialismo digital contemporâneo sofreram.

Além do mais, o potencial que o modelo da DeepSeek encerra de multiplicar o poder de desenvolver IAs generativas (e de produzir valor por meio delas) para muito além de poucas grandes megacorporações permite vislumbrar um capitalismo digital global mais diversificado, o que é uma boa notícia em uma conjuntura histórica na qual as Big Techs estadunidenses deixaram explícita sua organicidade ao projeto etnonacionalista, supremacista branco, xenófobo, misógino e de declarada inspiração nazifascista da extrema-direita mundial.

Em um artigo publicado no Blog da Boitempo, Carlos Eduardo Martins defende que o modelo encarnado pela DeepSeek (software de código aberto; ênfase no trabalho intelectual integrado de programadores, profissionais das ciências humanas e poetas; baixos custos e baixo consumo energético, resultando em um relativamente baixo impacto na biosfera) e promovido pela China graças ao investimento em força de trabalho intelectual, à priorização do desenvolvimento de software ao invés que o de hardware e ao incentivo à articulação das forças produtivas, representa um paradigma de acumulação emergente baseado na socialização, nas energias renováveis e na propriedade coletiva, em contraposição ao representado pelo imperialismo estadunidense centrado no controle espacial, na aposta até o fim nos combustíveis fósseis e no modelo proprietário gerador de oligopólios e de dependências.

Uma análise pertinente, desde que não esqueçamos que o que a China enquanto potência tecnocolonial emergente visa não é a emancipação da humanidade e da biosfera do capitalismo e dos regimes de poder a este atrelados (racismo e patriarcado), que sustentam o sistema-mundo configurado pela modernidade brancocentrada, mas a hegemonia de uma lógica de produção de valor e de acumulação de capitais baseada no aproveitamento da socialização do trabalho intelectual (o que não elimina a apropriação privada do valor, embora pluralize os atores que dela se beneficiam e possibilite que mais atores não-ocidentais participem da acumulação global) e em energias consideradas renováveis (cuja produção também afeta brutalmente comunidades vulneráveis e ecossistemas, servindo mais à expansão do capital do que à preservação da geo e da biodiversidade): modelo do qual o país se projeta como líder global. Uma forma mais suave de (tecno)colonialismo, mas só isso: uma variante do capitalismo e do colonialismo menos catastróficas que as promovidas pelo Ocidente.

A startup chinesa, inclusive, não se preocupou com uma maior diversificação da base de dados para o treinamento de seus modelos de linguagem com relação às utilizadas para treinar suas congêneres estadunidenses. Da mesma forma que o TikTok não é a solução emancipatória ao domínio de Meta e X das plataformas de redes sociais (tanto que, por exemplo, o crescimento da extrema-direita na Europa deve muito à sua atuação no TikTok), embora a rede chinesa possua um algoritmo menos diretamente voltado à promoção de conteúdos fascistas, a DeepSeek não é a solução emancipatória ao poder de OpenAI e Google no desenvolvimento de inteligências artificiais generativas. No entanto, o modelo de produção, funcionamento e gestão das inteligências artificiais generativas da DeepSeek me parece vislumbrar possibilidades de apropriação promissoras para as lutas emancipatórias.

Inteligências artificiais emancipatórias seriam inteligências artificiais concebidas e programadas coletivamente por movimentos sociais populares, coletivos, grupos, comunidades e experiências anticapitalistas e contracoloniais de diversas latitudes do Sul Global; modelos de linguagem treinados com bases de dados pluriversais elaboradas por sujeitos coletivos periféricos insurgentes: IAs zapatistas, IAs concebidas por movimentos de luta por terra e moradia na América Latina e na África, IAs de movimentos e coletivos indígenas de Abya Yala, IAs quilomboas, IAs da resistência palestina, da resistência curda, da resistência saaraui, das resistências negras em todas as latitudes, IAs de comunidades em luta contra mineradoras e “grandes obras”, IAs de coletivos periféricos… Inteligências artificiais não pensadas para solucionar problemas corporativos e otimizar a busca por lucro, mas para multiplicar e pluriversalizar os saberes humanos, as cosmologias, as histórias, para procurar soluções criativas e não-capitalocêntricas para a relação humano-biosfera, para a catástrofe climática do Capitaloceno, para a desconstrução do racismo, do patriarcado, para a superação das opressões históricas.

Os modelos de linguagem da DeepSeek, ao passo que apontam que é possível produzir IAs sem custos muito elevados (mas ainda assim, por enquanto, inacessíveis aos movimentos emancipatórios) e sem precisar de enormes quantidades de chips e de grandes data centers, o que é alentador para coletivos insurgentes (pois permite pensar que, se foi possível fazê-lo com poucos milhões de dólares, talvez o seja também com algumas centenas de milhares de reais, de pesos, de rands, de dirhams…), abrem uma brecha ainda mais decisiva: o código aberto que a startup chinesa disponibilizou pode ser apropriado não só por programadores independentes ou por outras pequenas empresas pelo mundo, mas também por programadoras e programadores engajados em movimentos populares para que possam modifica-lo, adaptá-lo, melhorá-lo e usá-lo como base para o desenvolvimento de IAs com fins emancipatórios. Uma das consequências (talvez não prevista nem desejada) do modelo de acumulação de capital e de colonialismo digital promovido pela China, baseado na articulação global das forças produtivas e no aproveitamento da socialização do trabalho criativo, pode ser liberar o potencial digital de grupos oprimidos e de movimentos populares anticapitalistas e contracoloniais.

Em uma perspectiva emancipatória, penso que esse passo (que ainda está por ser dado e não sabemos se e quando os oprimidos do mundo terão condições reais de dá-lo) será só o primeiro rumo a uma transformação ainda mais profunda e substancial: a superação da própria concepção moderna e ocidentecêntrica de tecnologia e de inteligência e a plurivesalização das ontoepistemes tecnológicas e suas materializações. Não mais a apropriação de tecnologias modernas para dar-lhes outros fins, mas a criação de novos modos de ser das tecnologias, de novos modos de articular a realidade.

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Antonino Condorelli é professor do Departamento de Comunicação Social da UFRN e coordenador do grupo de pesquisa DESCOM e membro da equipe de curadoria desta coluna Diversidades

A coluna Diversidades tem a curadoria do grupo de pesquisa DESCOM – Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Texto publicado originalmente em Fevereiro/2025