Entre 2023 e 2024, o número de entregadores de aplicativos cresceu 18%.

Falsa promessa de autonomia das plataformas contrasta com a realidade dos trabalhadores por apps

O trabalho mediado por aplicativos digitais tem transformado de forma acelerada a organização das relações laborais no Brasil, na América Latina e em outros países. Seu crescimento está associado a promessas de flexibilidade, maior autonomia e renda extra, mas a realidade cotidiana vivida por milhares de trabalhadores revela um cenário de instabilidade, insegurança e precariedade.

Uma pesquisa internacional desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), coordenada por Roberto Véras de Oliveira, professor titular do Departamento de Ciências Sociais, vem se dedicando a compreender essas transformações e os impactos sociais, econômicos e políticos que delas decorrem.

No Brasil, os números mostram a força da expansão. Entre 2023 e 2024, o número de entregadores de aplicativos cresceu 18%, alcançando aproximadamente 455 mil pessoas, segundo levantamento do Cebrap, de acordo com matéria publicada no site da UFPB. O ingresso nessa atividade é, muitas vezes, motivado pela necessidade de garantir renda em um mercado de trabalho cada vez mais restrito. Os atrativos divulgados pelas plataformas incluem a possibilidade de controlar o próprio tempo, conciliar compromissos pessoais e aumentar ganhos. Contudo, a experiência concreta registrada pela pesquisa aponta para jornadas longas, rendimentos líquidos próximos ou até inferiores ao salário mínimo, exposição a riscos constantes de acidentes e assaltos, além de episódios recorrentes de discriminação.

Assimetria de poder

Roberto Véras de Oliveira é professor titular da UFPB, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e é Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFCG.

O estudo mostra que a relação entre trabalhadores e plataformas é marcada por forte assimetria. As empresas definem unilateralmente os termos de adesão, podendo alterá-los a qualquer momento, sem diálogo ou mecanismos de negociação. Além disso, exercem controle rigoroso por meio de algoritmos que monitoram, avaliam e classificam os entregadores, influenciando diretamente o acesso às corridas e a própria permanência na plataforma. Essa forma de gestão digital – invisível, pouco transparente e de difícil contestação – desmonta a ideia de autonomia frequentemente propagada como característica do setor.

A pesquisa, de caráter comparativo e internacional, foi desenvolvida em 11 cidades brasileiras, quatro argentinas, três colombianas e duas mexicanas. O trabalho de campo envolveu entrevistas semiestruturadas com entregadores, lideranças de coletivos de trabalhadores, representantes empresariais e gestores públicos. Essa abordagem permite identificar tanto as especificidades nacionais quanto os traços comuns que estruturam o trabalho mediado por aplicativos na região.

Os resultados revelam que a maior parte dos entregadores possui uma trajetória anterior já marcada pela vulnerabilidade. Muitos passaram por períodos de desemprego, atividades assalariadas informais ou ocupações autônomas instáveis. Assim, quando ingressam no trabalho digital, não rompem com a precariedade; ao contrário, ela assume novas formas. O modelo de negócios do setor, baseado no “trabalho sob demanda”, transfere quase todo o risco para o trabalhador: os custos com combustível, manutenção de veículos e equipamentos são de sua responsabilidade, enquanto o tempo de espera entre uma entrega e outra não é remunerado.

Dificuldade de organização

Apesar das condições adversas, a pesquisa identificou diferentes estratégias de resistência e organização. Greves e manifestações vêm ocorrendo em várias cidades, inclusive de forma articulada em âmbito nacional, como o protesto realizado em abril de 2024. Muitos trabalhadores, mesmo sem engajamento direto, reconhecem a importância da mobilização coletiva para a conquista de direitos. Essas experiências são ainda incipientes, mas indicam uma capacidade notável de articulação diante da fragmentação e da pressão cotidiana imposta pelas jornadas extensas.

As entrevistas também evidenciam a dificuldade de consolidar formas estáveis de organização. A rotina intensa e a urgência por garantir renda limitam a participação em assembleias ou reuniões. Além disso, os sindicatos tradicionais ainda oferecem pouco apoio a essas iniciativas emergentes, o que fragiliza a interlocução com as empresas em escala nacional ou internacional. Ainda assim, sinais de amadurecimento e de fortalecimento dos coletivos de entregadores podem ser observados.

No campo regulatório, a pesquisa destaca três modelos principais em debate na América Latina. O primeiro é o modelo laboral clássico, que reconhece o vínculo empregatício e assegura todos os direitos previstos nas legislações trabalhista e previdenciária. Essa interpretação parte do entendimento de que há subordinação digital, caracterizada pelo controle algorítmico das rotas, avaliações e rendimentos. Em alguns países, como Colômbia, Argentina e Brasil, decisões judiciais já reconheceram, em casos específicos, essa relação de emprego.

Modelos de regulamentação na América Latina

O segundo modelo propõe a criação de um regime intermediário ou sui generis, específico para os trabalhadores de plataforma. Essa solução busca equilibrar a flexibilidade do trabalho digital com a necessidade de oferecer alguma proteção social. Prevê direitos parciais, como contribuições previdenciárias, seguro contra acidentes, remuneração mínima por hora e possibilidade de organização coletiva, mas sem estabelecer vínculo formal de emprego. Países como México, Chile e Uruguai aprovaram legislações nessa direção.

O terceiro modelo, ainda predominante na região, é o da regulação fraca ou inexistente, em que os trabalhadores são reconhecidos apenas como autônomos. Nesses casos, quando há alguma proteção, ela costuma se restringir a acordos voluntários ou mecanismos contratuais frágeis, que não garantem segurança nem estabilidade. Essa forma de regulação reforça a desigualdade e perpetua a informalidade estrutural nos mercados de trabalho.

No Brasil, a proposta em discussão pelo governo federal segue a lógica do regime intermediário. Prevê remuneração mínima por hora e proteção previdenciária, mas não estabelece vínculo formal de emprego. A avaliação da pesquisa aponta que esse modelo pode representar um avanço em relação à ausência atual de regulamentação, mas também corre o risco de consolidar uma categoria de trabalhadores de “segunda classe”, submetidos a uma proteção parcial e a responsabilidades limitadas para as empresas.

Além do debate jurídico e político, a pesquisa ressalta um aspecto mais amplo: a necessidade de recolocar o trabalho no centro da agenda pública. Embora siga sendo fundamental na vida das pessoas, especialmente das classes populares, o trabalho perdeu espaço no debate político, enquanto a precarização se dissemina. A emergência do trabalho digital, nesse sentido, aprofunda contradições históricas e desafia a construção de novas formas de proteção social.

Fundamentar o debate público

Roberto Véras de Oliveira, que além de professor titular da UFPB atua no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade e como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), sublinha que o propósito maior da pesquisa é contribuir para o entendimento e para a formulação de alternativas capazes de reduzir a vulnerabilidade dos trabalhadores. Seu percurso acadêmico, marcado por estudos anteriores sobre sindicalismo e informalidade, converge agora para a análise das novas formas de exploração e resistência no mundo digital.

A pesquisa desenvolvida na UFPB mostra que a promessa de liberdade e flexibilidade divulgada pelas plataformas digitais contrasta com a realidade de precariedade e subordinação algorítmica. Mais do que mapear problemas, os resultados trazem elementos fundamentais para o debate público e para a formulação de políticas que garantam dignidade, segurança e direitos aos trabalhadores de aplicativos. O futuro do trabalho, conclui o estudo, depende da capacidade de equilibrar inovação tecnológica com justiça social.