(Ricardo Valentim)
No “Fado Tropical” de Chico Buarque, uma melodia que mistura saudade e melancolia, somos transportados por paisagens de Portugal e do Brasil. As belezas singulares desses países se conectam pela arte e pela poesia, e a canção, ao entoar sobre a nossa “mãe gentil”, consegue mostrar as nossas culturas por meio da emoção. Nessa intersecção, o fado se torna uma ponte inesperada para um tema complexo: a sífilis, uma doença milenar que, assim como a música, faz parte das nossas histórias e heranças.
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A poesia do fado nos convida a reconhecer as fragilidades do ser humano, algo que o artista aponta como parte da nossa essência — o lirismo, a melancolia e a sífilis. De forma sutil e sofisticada, ele conecta a vulnerabilidade humana à doença, que foi um ponto de sofrimento compartilhado entre as nossas culturas, Brasil e Portugal. O fado, então, não é apenas arte; ele se torna um lembrete de que, mesmo em meio à beleza da melodia, a ciência precisa atuar para responder aos desafios da saúde pública.
A sífilis, uma doença tão antiga quanto o fado, continua a ser um desafio no contexto da saúde global. No Brasil, assim como em muitos lugares do mundo, a luta contra essa infecção bacteriana, causada pela bactéria Treponema pallidum, é constante. É nesse cenário que a ciência entra em cena, não com a melancolia do fado, mas com a precisão de ferramentas, dados e evidências. O Projeto “Sífilis Não” é um exemplo de como a ciência se mobiliza para transformar a realidade, tornando-se uma ferramenta de indução de políticas públicas na saúde.
O projeto atuou na linha de frente do combate à doença, oferecendo um conjunto de instrumentos para discutir e aprimorar o diagnóstico e o tratamento. Ele reforçou a importância dos testes rápidos, que permitem identificar a doença de forma mais precoce, e colocou na agenda da atenção primária à saúde o tratamento com penicilina, um antibiótico altamente eficaz e de baixo custo, capaz de contribuir para reduzir a transmissão vertical da sífilis.
Além disso, a vigilância epidemiológica baseada em dados científicos e inteligência artificial é essencial para mapear a disseminação da sífilis, pois permite que as autoridades de saúde formulem políticas públicas de maneira mais consciente e efetiva. A ciência também fundamenta as ações de educação em saúde e prevenção, utilizando informações claras, baseadas em evidências, para conscientizar a população sobre as formas de transmissão, a prevenção e a importância do tratamento.
Esses esforços se alinham diretamente com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3, da Organização das Nações Unidas (ONU), que busca “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”. Mais especificamente, a meta 3.3 do ODS 3 propõe o fim das epidemias de doenças como a sífilis até 2030, mostrando que, apesar de ser uma composição de 1973, o fado de Chico Buarque continua muito atual.
O fado, com sua melodia que canta a história de um povo, traz à tona um problema que por muito tempo permaneceu nas sombras. A sífilis, com sua carga de estigma e melancolia, encaixa-se de forma inquietante na poesia da canção. O artista, ao sugerir que a sífilis está no sangue lusitano, faz uma metáfora poderosa sobre como as fragilidades humanas e as doenças se entrelaçam com a nossa identidade e a nossa interculturalidade.
Essa sensibilidade artística nos permite ir além dos dados frios e dos números de casos, humanizando a doença e o desafio de combatê-la, sem os estigmas e dogmas do pecado. Ao mesmo tempo, essa mesma arte nos lembra da urgência de uma resposta concreta e efetiva, que só a ciência pode oferecer. É a partir do conhecimento científico que podemos quebrar o ciclo de transmissão, tratar os infectados e, mais importante, prevenir que novas gerações sofram com as consequências devastadoras da doença. Não há poesia e nem arte onde existem o negacionismo e a desinformação.
Em última análise, a arte e a ciência, embora possam parecer caminhos separados, se complementam. O fado de Chico Buarque nos emociona e nos lembra da nossa história e das nossas vulnerabilidades, e nele a sífilis foi lembrada. A ciência, por sua vez, nos dá as ferramentas para moldar o nosso futuro, para transformar a melancolia em esperança. Juntas, elas nos guiam da reflexão poética à ação pragmática, da aceitação das nossas fragilidades à busca pela cura e pela prevenção.
O fado, apesar de ter trazido a sífilis para o palco da arte, é a ciência — com projetos como o “Sífilis Não” e a visão de sustentabilidade do ODS 3 — que a remove do cenário das doenças que afligem a humanidade. A ciência, que também pode ser inspirada pela arte, é capaz de oferecer um final mais feliz para essa história, e a covid-19 nos ensinou muito sobre isso.
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Ricardo Valentim é professor associado da UFRN









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