(Alipio DeSousa Filho)
Dizer a verdade é libertador. Há uma dimensão ética e superior nesse gesto, pois, quando afirma a verdade, o ser humano se engrandece, cresce, ao atravessar o limiar que separa a condição de servidão ao medo ou à covardia da atitude dignificante da coragem.
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Há quem diga que se pode praticar a omissão, sem que o fato represente a negação da verdade. Omitir-se seria prudência. Mas a omissão não é senão uma forma disfarçada de covardia. A omissão alimenta a mentira e a torna eficaz, porque silencia onde deveria haver exposição da verdade. O filósofo Michel de Montaigne, com justeza, dizia que “mentir é um vício odioso”.
É bem certo, a verdade carrega o desconforto do questionamento. Ela nunca é neutra, nunca é inofensiva. O que se chama verdade é, em última instância, a irrupção da crítica que revela o que mentiras visam manter oculto, que denuncia artimanhas para a perpetuação de monopólios de saber e poder, que escancara a ilegitimidade de convenções que buscam naturalizar desigualdades. É por isso que, como escreveu o criador da sociologia francesa Émile Durkheim, nas culturas, “a crítica sofre interdito”, “torna-se tabu”: ela é silenciada porque perturba as ordens estabelecidas. Nas culturas e sociedades, o tabu da crítica é o interdito da verdade. E tanto pelo estigma de “inconveniente” quanto pelo esforço em torná-la invisível ou irrelevante.
Na vida social cotidiana, a mentira costuma ser mais funcional do que a verdade. Ela é celebrada como diplomacia ou mesmo como sabedoria. Entretanto, por trás dessa valorização da mentira, oculta-se sua função de resguardar estruturas e relações de poder, convenções sociais de conveniência, hipocrisias. Hannah Arendt, filósofa alemã, refletindo sobre a mentira na política, advertiu que o falseamento deliberado da verdade é sempre um mecanismo de conservação de poderes, pois cria consensos artificiais e manipula a percepção coletiva sobre a realidade.
A mentira integra, acomoda, garante lugar em consensos. Mas consensos falsos, porque construídos sobre acordos que perpetuam desigualdades e exclusões. A mentira confere aparência de legitimidade a interesses de poucos transfigurados em bem comum. A mentira é, assim, cimento de desigualdades. E a experiência histórica e social confirma a pertinência dessa afirmação: nossas sociedades são governadas por mentiras que sustentam grupos e classes que usufruem da riqueza, da renda e do poder, prolongando privilégios, produzindo obstáculos à participação igualitária na vida social.
Michel Foucault sempre lembrou que a verdade nunca está fora das relações de poder, e que os poderes inventam sempre suas “verdades” para obter, com elas, efeitos de poder. Mas, ao mesmo tempo, sugeriu que o dizer verdadeiro deve ser praticado para contestar as “verdades do poder”, e fazer ruir arquiteturas de sua sustentação. Em seus estudos, o filósofo voltou aos gregos antigos para trazer ao pensamento contemporânea a ética da parrésia: o dizer verdadeiro, franco. É nesse ponto que o dizer a verdade torna-se a própria infraestrutura da atitude de crítica, tal como ele a entendia e conceituou: práticas da “indocilidade refletida” e da “inservidão voluntária”.
Dizer a verdade, portanto, não é apenas um ato individual de coerência moral, mas um gesto político e social de resistência. A verdade é subversiva porque rompe os pactos de silêncio que permitem às desigualdades, injustiças, violências e opressões perpetuarem-se. Quando enunciada, ela desnuda os privilégios, denuncia certos grupos de poder e desarticula a ilusão de que a realidade social é imodificável. O que a verdade incômoda enuncia é que toda realidade instituída – e só há realidade instituída! – é construída e modificável, revogável!
O ato de dizer a verdade é uma atitude de crítica com efeitos sociológicos, antropológicos, filosóficos, políticos e psicanalíticos: a crítica é capaz de mostrar que as ordens sociais são feitas de construções históricas e arbitrárias, e não de essências intocáveis, necessárias e insubstituíveis. Assim como é capaz de despertar a consciência de que a vida de cada um é produzida sob a vigência dessas ordens, não sendo destino inevitável, podendo cada um tomar a vida em suas próprias mãos e (re)construí-la, refazê-la, com autonomia e liberdade.
A dificuldade em praticar o dizer verdadeiro e em acolher a verdade decorre também de que ela não é confortável. Dizer a verdade implica arriscar-se à exclusão, à incompreensão e, muitas vezes, à violência simbólica ou material. Nietzsche já advertia que a verdade é inseparável de uma dimensão trágica: encará-la é suportar o peso de ver a realidade sem as ilusões que a suavizam e fazer que tantos mais a enxerguem também assim. O que poucos querem! E é também carregar o estigma do tabu, tornar-se o tabu do dizer franco. Mas, para um parresiasta, o que ele pensa é: e daí?!
A mentira, ao contrário, seduz justamente porque oferece o conforto das ilusões, ainda que ao preço da servidão. E como escreveu o espanhol Vicente Verdú, “a verdade procede de um trabalho duro e muitas vezes lento, enquanto a mentira se comporta como uma faísca”… faísca de fogo fácil, mas fogo facilmente aplacável. A sabedoria trágica popular tem seu dito: “mentira tem perna curta”!
Em suma, a verdade não é um valor abstrato ou uma virtude ideal. Ela é prática concreta de liberdade, gesto ético-político que liberta o ser e, ao mesmo tempo, abre possibilidades de transformação social.
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Alipio DeSousa Filho é professor e diretor do Instituto Humanitas UFRN









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