O Brasil mostra-se para o mundo como um país republicano e democrático mantendo-se lúcido por meio de suas instituições (Foto Wilson Dias/Agência Brasil)

Apesar de você o Brasil contínua democrático e soberano

(Ricardo Valentim)

A canção “Apesar de Você”, lançada por Chico Buarque em 1978, transcende seu contexto de crítica à ditadura militar para se tornar uma lente por meio da qual podemos analisar a complexa e, muitas vezes, dolorosa história recente do Brasil. A música, com sua melodia cativante e letra poderosa e repleta de memórias, captura a essência de uma resistência silenciosa e a crença inabalável de que a opressão, por mais forte que seja, é sempre efêmera.

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A frase “Apesar de você, amanhã vai ser outro dia” não é apenas uma promessa de liberdade, mas uma afirmação muito precisa sobre a natureza cíclica e, por vezes, implacável da história. A democracia, como um rio, pode ser desviada ou represada, mas sempre encontrará um caminho para fluir novamente; em algum momento, voltará a seguir o seu curso, imposto pelas realidades concretas e subjetivas da humanidade. A realidade, afinal, se impõe.

A tragédia da pandemia de Covid-19, com suas mais de 700 mil mortes, expôs a face mais cruel e perigosa do negacionismo e da irresponsabilidade de um governo que, em vez de defender a vida, minimizou a ciência e os protocolos sanitários.

Essa música, em sua profundidade poética diante do obscurantismo da ditadura, nos convida a uma conexão com uma mensagem de esperança e resiliência e com uma série de eventos cruciais que moldaram o Brasil desde a redemocratização. Ao traçarmos uma linha do tempo que vai do golpe de 1964 à recente condenação do bolsonarismo, percebemos que a luta pela democracia não é um evento único, mas uma batalha contínua, diária e permanente. A história, como a letra da música sugere, tem na memória resgatada um peso que, no final das contas, responsabiliza aqueles que tentam detê-la. Felizmente, tiranos e déspotas são, historicamente, personagens passageiros.

Após a ditadura militar, o Brasil viveu um período de otimismo com a promulgação da Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”. Esse documento, que garantiu direitos e liberdades fundamentais, representou o triunfo da democracia sobre o autoritarismo. No entanto, o rio da história, como sabemos, nem sempre corre em linha reta: trata-se de um percurso sinuoso, quase nunca retilíneo.

O que se seguiu foi um período de grandes desafios e contradições. Os anos 2010 trouxeram consigo uma nova crise política e social. A Operação Lava Jato, ou o “Lavajatismo”, que inicialmente foi celebrada como um marco no combate à corrupção, acabou se tornando um catalisador da polarização e representou um processo profundo de adoecimento da democracia brasileira. A forma como a operação foi conduzida, muitas vezes com um forte viés midiático e político, expôs fissuras profundas nas instituições. O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi o ápice dessa crise. Independentemente das opiniões sobre sua legalidade ou justiça, ele deixou o país profundamente dividido e abriu um vácuo político que seria preenchido pela ascensão de uma nova força: o bolsonarismo populista e radical.

O bolsonarismo surgiu nesse cenário de desilusão com a política tradicional, um espaço ideal para o populismo oportunista. Não era um mero movimento político; era, em muitos aspectos, um resgate de discursos autoritários que pareciam ter sido superados pelo tempo. Instalava-se também um sequestro, por vezes sutil, dos símbolos nacionais. A nostalgia do golpe de 1964, a idealização de um passado repressivo e a desvalorização das instituições democráticas tornaram-se a base desse movimento. A presença do General Heleno e de outras figuras militares no governo de Bolsonaro simbolizava essa conexão direta com o passado autoritário, um passado que a música de Chico Buarque havia prometido que não retornaria.

A tragédia da pandemia de Covid-19, com suas mais de 700 mil mortes, expôs a face mais cruel e perigosa do negacionismo e da irresponsabilidade de um governo que, em vez de defender a vida, minimizou a ciência e os protocolos sanitários. Nesse período, a canção de Chico Buarque ganhou uma nova e sombria ressonância: o “você” da canção parecia encarnar não apenas um regime opressor, mas a própria negligência e o descaso com a vida humana.

O evento de 8 de janeiro de 2023, com a tentativa de golpe e a invasão das sedes dos Três Poderes, foi o momento mais crítico para a democracia brasileira desde a redemocratização. Foi uma tentativa direta e violenta de rasgar a Constituição de 1988, com a invasão dos símbolos da República: a Presidência, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. O que se seguiu, no entanto, foi uma demonstração da força e da resiliência das instituições democráticas. A Justiça, o Congresso, o Executivo e a sociedade civil se uniram em defesa do Estado Democrático de Direito. Felizmente, nosso país saiu fortalecido deste trecho mais recente da nossa história.

A condenação de Bolsonaro e de seus aliados por seus crimes contra a democracia, além da responsabilização de figuras como o General Heleno, representa a concretização da mensagem de “Apesar de Você”. A história se mostra, de fato, implacável. Ela não perdoa e, no devido tempo, exige que aqueles que tentaram desviar seu curso prestem contas. A música de Chico Buarque não é apenas uma canção de esperança; ela é um aviso de que os tiranos autoritários e seus cúmplices, por mais poderosos que se sintam, são meros passageiros. A democracia, a Constituição de 1988 e os princípios que ela defende são o que realmente permanece. O Brasil, apesar de ainda polarizado e adoecido, mostra-se para o mundo como um país republicano e democrático que, mesmo sendo atacado de forma endógena e exógena, manteve-se lúcido por meio de suas instituições.

A jornada do Brasil, marcada por tantos desafios, nos lembra que a luta pela democracia é um esforço contínuo e que a liberdade não é um ponto final, mas um caminho a ser trilhado todos os dias. A recente condenação do bolsonarismo reforça a crença de que, “apesar de você”, a democracia sempre encontrará um jeito de tomar seu rumo e ocupar o seu lugar.

O que vivenciamos no Brasil com a condenação do bolsonarismo não deveria ser motivo de alegria, mas de tristeza, pois percebemos, infelizmente, que nosso país ainda não está livre de seus problemas históricos que flertam com o autoritarismo.

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Ricardo Valentim é professor associado da UFRN