Na outra ponta dessa cultura que sexualiza crianças e adolescentes, encontramos o etarismo, a rejeição social aos corpos que envelhecem. (Foto: Agência Brasil)

“Adultização”: novidade ou retrocesso?

(Maria Fernanda Cardoso Santos)

No vídeo Adultização, publicado em agosto deste ano, o influenciador digital e humorista paranaense Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, denuncia a exposição e a sexualização precoce de crianças nas redes sociais, alertando para a dinâmica dos algoritmos de plataformas como Instagram e Kwai, que impulsionam esse tipo de conteúdo. O vídeo, que já soma quase 30 milhões de visualizações, desencadeou debates no Congresso Nacional e resultou no registro de ao menos 29 projetos de lei, com adesão de parlamentares de diferentes posições políticas. Felca enfatiza que estamos diante de um fenômeno novo, a que dá o nome de “adultização”.

No entanto, talvez seja menos uma novidade do que um retrocesso, já que a própria ideia de infância e adolescência como fases distintas da vida que demandam proteção é uma construção histórica relativamente recente. Como lembra Philippe Ariès em História social da criança e da família, até o início do século XX, no contexto europeu, crianças eram tratadas como “adultos em miniatura”, sem espaço ou tratamento específico. Somente no século XX se consolidou uma concepção de infância e adolescência como períodos singulares, com características próprias. Psicologia, psicanálise e pedagogia tiveram papel central nesse processo, ao evidenciar que a constituição do sujeito depende de relações intersubjetivas e experiências sociais. Aos poucos, fortaleceu-se a noção de que crianças e adolescentes necessitam de proteção especial. Afinal, como escreveu Lya Luft, “a infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias”, marcando nossa vida futura, e crianças e adolescentes não dispõem dos mesmos recursos que os adultos para enfrentar as adversidades da vida.

No campo jurídico, essa concepção de infância e adolescência protegidas ganhou corpo ao longo do século XX. No Brasil, seu marco é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído em 1990, fruto da mobilização de movimentos sociais como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a Pastoral da Criança, e inspirado na Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (1989). O ECA é a culminância do que já se anunciava no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar direitos a crianças e adolescentes, protegendo-os de negligência, violência e exploração.

Pela primeira vez, crianças e adolescentes foram reconhecidos como sujeitos de direitos, rompendo com a lógica das legislações “menoristas” de 1927 e 1979, que os tratavam ora como propriedades das famílias (nas camadas mais abastadas, sob o pátrio poder, hoje chamado poder familiar), ora como objetos de caridade ou de controle do Estado (no caso da infância pobre). Um dos pilares da proteção integral prevista pelo ECA é o princípio da dignidade da pessoa humana, que estabelece que ninguém pode ser tratado como objeto. Cabe, portanto, à família, à sociedade e ao Estado garantir que crianças e adolescentes não sejam coisificados nem explorados. É uma responsabilidade coletiva, de cada uma e cada um de nós.

No entanto, no contexto das redes sociais, a chamada “adultização” frequentemente transforma crianças e adolescentes em objetos de consumo e de desejo, em um processo que se cruza com o debate sobre consentimento e exploração. Surge, então, a questão: quem deve regular o acesso infantojuvenil às redes – a família ou o poder público? Transferir toda a responsabilidade apenas para as famílias significa, na prática, sobrecarregar sobretudo as mulheres, que continuam sendo as principais responsáveis pelo cuidado.

O clamor pela proteção das crianças hoje mobiliza esquerda e direita, progressistas e conservadores. Mas é preciso cautela: o discurso da proteção pode escorregar para um viés conservador e patriarcal, que, em lugar de cuidar, reforça a vulnerabilidade de crianças e adolescentes – e também das mulheres. Nesse modelo, o pater continua sendo visto como dono dos corpos femininos e infantis, enquanto a sociedade cultua a juventude e supervaloriza corpos jovens.

Na outra ponta dessa cultura que sexualiza crianças e adolescentes, encontramos o etarismo, a rejeição social aos corpos que envelhecem, sobretudo no caso das mulheres. Não por acaso, a proibição simbólica da velhice feminina se articula diretamente com o culto a corpos pueris. Ao mesmo tempo, a recusa conservadora à educação sexual impede que crianças e adolescentes recebam ferramentas de proteção, deslocando a responsabilidade para as vítimas e encobrindo abusos que, na maioria das vezes, acontecem dentro das próprias casas. Famílias conservadoras tendem a silenciar casos, enquanto se perpetua o estigma de que a violência sexual seria fenômeno das periferias.

Proteger a infância, portanto, não pode se reduzir a vigiar telas ou criar novas punições: é preciso enfrentar as bases culturais e estruturais que ainda sustentam o patriarcado, o etarismo e a desigualdade social. Sem educação sexual, sem políticas públicas consistentes e sem a responsabilização efetiva dos adultos e das plataformas digitais, qualquer iniciativa será apenas paliativa. A defesa da infância exige reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos, e não como propriedades, objetos de consumo ou alvos de discursos moralistas. Mais do que um clamor momentâneo, trata-se de um compromisso coletivo com a dignidade humana e com o futuro que estamos construindo. Afinal, a infância não é mercadoria, nem vitrine, nem moeda de troca. É chão – o chão sobre o qual todos caminhamos.

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Maria Fernanda Cardoso Santos é professora do Instituto Humanitas da UFRN