(Alipio DeSousa Filho)
Os mitos acompanham a humanidade desde seus primórdios, e são inseparáveis da vida coletiva. Surgem como narrativas fundadoras que dão sentido ao mundo, às instituições e à existência humana, constituindo explicações que remetem sempre a “origens”. Não se limitam às sociedades ditas “primitivas”: nas sociedades urbano-industriais, o mito se atualiza em novas formas de imaginação e continua a unir indivíduos em práticas, crenças e emoções comuns.
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O mito, como observaram estudiosos da religião e da mitologia Mircea Eliade e Lévi-Strauss, narra os começos: do cosmos, da vida, da morte, da família, do trabalho etc. Essa remissão às origens confere legitimidade à ordem presente, convertendo construções humanas em fundações cósmicas. O mito opera, assim, como celebração da “lei do grupo humano”, “lei de cultura”, sacralizando e sancionando convenções sociais e naturalizando seu caráter arbitrário, isto é, convencional. Tal funcionamento deriva da falta de saber dos humanos sobre si mesmos e sobre o mundo que constroem. A imaginação mítica, preenchendo essa lacuna, atribui a forças sobrenaturais transcendentais o que é produto humano, cultural, social. O filósofo Henri Bergson destacou que, ao contrário dos animais dotados de instinto, o ser humano faz uso da inteligência e da imaginação para orientar-se, enquanto Freud e Lacan demonstraram como o mito estrutura o inconsciente e a relação do “eu” com o “outro”.
A função social do mito é a de cimentar simbolicamente a vida coletiva. Ao narrar uma “história verdadeira e primordial”, ele produz crenças que tornam naturais e imutáveis práticas e instituições. Nesse ponto, os mitos são a forma primeira da ideologia nas diversas culturas. Entendida em sentido amplo, como linguagem simbólica da cultura, a ideologia assegura a coesão social, sustentando normas e instituições ao custo de ocultar seu caráter histórico e convencional. O desconhecimento, constitutivo dessa operação, gera alienação e sujeição: os sujeitos ignoram que vivem em convenções arbitrárias e percebem a ordem como eterna e necessária.
Se o mito pode ser considerado a primeira forma da ideologia, também a ideologia nunca se desprende totalmente do mito. Mesmo quando se pretende racional — como no racionalismo moderno ou nos discursos científicos —, a ideologia recorre ao imaginário (mítico ou não) para sua função social. O filósofo Cornelius Castoriadis demonstra bem como todo sistema de sociedade se vale do imaginário para construir sua esfera simbólica e ideológica, e em suas várias formas, para o predomínio de suas funções sociais. O antropólogo Gilbert Durand e o sociólogo Michel Maffesoli demonstraram como o Ocidente tentou domesticar o mito, classificando-o como superstição, mas sem jamais suprimi-lo.
Mito e ideologia constituem dimensões constituintes da vida humana em sociedade. Ambos naturalizam e sacralizam a ordem, assegurando sua permanência e legitimidade. Ao mesmo tempo, revelam a potência do imaginário como força estruturante da vida coletiva humana em culturas e sociedades. Não faltam razões, portanto, para que os seres humanos enxerguem que pela imaginação podem também inventar outros modos de ser, outros modos de vida, outros modos de coabitar o mundo.
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Alipio DeSousa Filho é professor do Instituto Humanitas UFRN









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