(Anne Damásio)
Pensar a educação em sua relação com o neoliberalismo é uma tarefa necessária e inadiável. Essa relação, ainda que nem sempre nomeada, tem orientado condutas justificadas pela busca de produtividade e de espaços dentro das instituições de ensino superior, os quais frequentemente se convertem em territórios de disputa por recursos e prestígio. Salas que deveriam ser de uso comum passam a abrigar bases e laboratórios — verdadeiras “ilhas do norte em meio ao sul”, na formulação de Boaventura de Sousa Santos — reproduzindo hierarquias e exclusões.
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Nesse contexto, observa-se o enfraquecimento do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Projetos de pesquisa, impulsionados pela lógica da produtividade, passam a adquirir o status de “em execução” apenas para atender às exigências de relatórios e avaliações.
Esse quadro remete a um problema ainda mais grave, evidenciado nas disputas internas que atravessam a vida universitária e que, como ironiza Rubem Alves ao mencionar a competição “pelo cargo de secretário-geral do coral”, revelam a banalização do sentido público da docência. Em muitos casos, o ensino parece ocupar um lugar secundário, relegado a plano inferior diante das demandas por desempenho e reconhecimento institucional. O magistério, contudo, deveria conservar sua dignidade intrínseca, exigindo dos docentes o compromisso ético e intelectual próprio de quem se dedica à formação humana.
A docência implica, por sua natureza, a busca constante por novas formas de conhecer e por estratégias diversificadas de partilhar o saber. Como observa Gloria Jean Watkins, mais conhecida como bell hooks, a educação contemporânea atravessa uma crise de sentido: tornou-se comum afirmar que “professores não querem ensinar e alunos não querem aprender”. O debate sobre o ato de ensinar, quando proposto, tende a ser recebido com indiferença, num ambiente marcado por preocupações com rankings, metas, avaliações e índices de produtividade — dispositivos que refletem e reforçam a racionalidade neoliberal.
Pierre Dardot e Christian Laval analisam esse processo ao destacar que “O neoliberalismo atual não veio para transformar escolas e universidades de uma hora para outra. Desde bem cedo, muitos autores se dedicaram a definir e construir uma escola que coincidisse ponto a ponto com o espírito do capitalismo (…). Assim, a escola e a universidade devem se tornar quase empresas, com um funcionamento calcado no modelo das companhias privadas e com a obrigação de alcançar máximo desempenho.”
A escola e a universidade, sob tal racionalidade, deixam de ser espaços de formação crítica e cidadã, transformando-se em engrenagens do sistema econômico voltadas à produção de indivíduos moldados pela lógica do capital: sujeitos produtivos, competitivos e permanentemente adaptáveis ao mercado de trabalho.
O neoliberalismo atua, assim, como força de assujeitamento, instaurando novas formas de subjetividade fundadas no medo e na instabilidade — afetos que corroem a autoestima e reduzem a disposição para o pensamento crítico e para a vida coletiva.
Diante desse cenário, é necessário repensar a educação a partir da lógica dos afetos, compreendida, em sentido espinosano, como potência de existir. Experienciar os afetos — alegres ou tristes — constitui condição para a plenitude da vida e para a reconstrução de uma ética da convivência. Nesse sentido, torna-se urgente instaurar uma prática educativa fundada no respeito mútuo e na valorização do encontro humano.
Como afirma bell hooks: “A sala de aula continua sendo o espaço que oferece as possibilidades mais radicais na academia. Porém, há anos é um lugar onde a educação é solapada tanto pelos professores quanto pelos alunos, que buscam usá-la como vitrine para seus interesses oportunistas, em vez de fazer dela um espaço de aprendizado.”
Defender uma educação comprometida com a formação ética, política e afetiva do sujeito significa resistir à captura neoliberal que transforma o saber em mercadoria e o estudante em cliente. Tal resistência exige a reconstrução de um horizonte utópico no qual a universidade e a escola possam reafirmar-se como espaços de produção coletiva de conhecimento e de emancipação.
Como propõe Boaventura de Sousa Santos, é preciso seguir construindo epistemologias do sul — práticas e saberes contrahegemônicos que devolvam à educação o seu sentido originário: o de formar sujeitos capazes de pensar, sentir e agir no mundo de maneira crítica, solidária e transformadora.
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Anne Damásio é professora do Instituto Humanitas/UFRN









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