(Mônica Costa)
Na apresentação do seu currículo, na Plataforma Lattes, Andreia Ferreira Nery afirma que acredita “na verdade, nas artes, na ciência, na saúde global e na defesa do meio ambiente como diretivas norteadoras para o terceiro milênio.” Por dez anos, ela foi professora na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso e, desde 2021, é professora titular no Departamento de Medicina Tropical e no Programa de Pós-Graduação em Biologia Parasitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Médica infectologista, Nery é uma das coordenadoras do Grupo de Estudos e Ações em Saúde Única (GEASU), que reúne pesquisadores e técnicos de várias instituições e coordena o projeto Enfrentando a Esporotricose, que tem financiamento do Ministério da Saúde/SUS e CNPq. Entre as atividades desenvolvidas pelo grupo estão estudos e reuniões técnicas com profissionais da saúde humana, animal e ambiental para discutir o problema, inclusive com investigações de novos casos da doença.
O objetivo do grupo é discutir e atualizar os profissionais da saúde humana e animal sobre os avanços da esporotricose no estado e os avanços da ciência na prevenção e no tratamento da esporotricose.
Desde 2017, foram registrados 4.012 casos da doença em pessoas e animais no Rio Grande do Norte. Entre os humanos, foram 856 ocorrências em 44 municípios do estado, das quais 519 foram confirmadas. Já entre os animais, foram notificados 3.156 casos em 21 municípios, com 1.639 confirmações de esporotricose. Natal lidera o número de casos notificados em humanos (609), seguida de Parnamirim (56), Macaíba (55), Santa Cruz (17), Nova Cruz (15), Goianinha (14), Baía Formosa (11), Arês (10), Lagoa Nova (10) e São Gonçalo do Amarante (9), entre outros.
A capital também encabeça o ranking de casos da doença em animais, com 2.328 notificações, seguida de Parnamirim (257), Extremoz (250), Baía Formosa (70), Santa Cruz (47), Macaíba (28) e São Gonçalo do Amarante (26), entre outros.
A pesquisadora define a esporotricose como uma doença social, e o motivo é que, de cada dez pessoas infectadas, sete são mulheres, especialmente na faixa etária entre 35 e 65 anos. “Isso ocorre por que há uma ideia de que só mulheres são responsáveis pelo cuidado, seja o cuidado dos filhos, da família, dos bichos, do ambiente, do conforto da família, do equilíbrio e tudo mais”, esclarece.
Há ainda outros fatores epidemiológicos não relacionados à biologia na transmissão da doença e que podem caracterizá-la como doença social. A predominância ocorre em lugares onde a coleta de lixo é irregular e falta saneamento básico. “Lugares onde se nota que as políticas públicas precisavam melhorar, e muito, para facilitar uma qualidade de vida melhor para humanos, animais e meio ambiente”, aponta. O olhar humano da médica se sobressai na afirmação: “O que eu estou querendo dizer é que eu não consigo desver o desamparo que eu vejo todo dia no ambulatório há décadas.”
Acompanhe a entrevista que ela concedeu ao portal Nossa Ciência
Doença social
Nossa Ciência: Os indicadores revelam que há uma prevalência de mulheres com faixa etária entre 35 e 65 anos entre as pessoas infectadas. Fale sobre isso.
Andreia Nery: No estudo que publicamos em 2023, concluímos que aproximadamente 70% dos pacientes com esporotricose no RN são mulheres entre 35 e 65 anos, trabalhadoras e cuidadoras.

É uma doença tropical negligenciada que, por ser tão negligenciada e por afetar principalmente mulheres e meninas, ainda não está nem na lista de notificação nem na lista de doenças tropicais negligenciadas do mundo.
A minha vontade, sempre em relação a esse tema, é que todo mundo que fale sobre ele perca o medo de dizer que é uma doença que afeta predominantemente mulheres. Ou seja, de mil casos, 700 vão ser mulheres, como a gente já tem demonstrado nas pesquisas. Ela é uma doença social, porque é uma doença de um modus operandi que está contido no contexto do ser mulher desde o Neolítico. Isso ocorre porque há uma ideia de que só mulheres são responsáveis pelo cuidado, seja o cuidado dos filhos, da família, dos bichos, do ambiente, do conforto da família, do equilíbrio e de tudo mais.
Historicamente, a proteção animal tem a ver com as atuações das mulheres. Isso também é determinante e, não à toa, a esporotricose humana atinge mais mulheres; a esporotricose animal atinge animais domésticos, principalmente os felinos, que são cuidados pelas mulheres. Essa lógica de destruição patriarcal, que vem consumindo e destruindo todas e todos, especialmente destrói mulheres e mata muito mais mulheres e crianças.
Então, isso faz da esporotricose uma doença que precisa sair da negligência. Só o fato de a gente poder falar sobre isso já é um ganho muito grande, e fazer isso circular e despertar desconfortos é fundamental.
Nossa Ciência: Em uma entrevista, a senhora afirmou que o grupo de pesquisa acompanha o avanço da esporotricose no RN por meio dos dados oficiais, mas reconhece que ainda há muita subnotificação de casos. Qual é a base para essa afirmação?
Andreia Nery: Os primeiros casos de esporotricose no RN foram diagnosticados em 2016. Em 2017, elaboramos e publicamos uma portaria de notificação compulsória da esporotricose humana e felina. Já foram registrados mais de quatro mil casos, sendo aproximadamente três mil em animais e pouco menos de mil em humanos.
Tudo isso foi compilado e elaborado em um resumo que publicamos em 2023. E, considerando que Natal é o lugar que mais notifica — e nós sabemos disso —, somos nós que notificamos durante a consulta. Sabemos que a maioria das outras unidades de saúde e de referência começou a notificar após a formação, mas o número maior em Natal é decorrente das nossas notificações, minhas e da professora Eveline Pipolo Milan, desde o início, quando atendemos aos casos de esporotricose humana.
Sabemos que a maioria das outras instituições, que não são acadêmicas, são apenas assistenciais, talvez atenda apenas um paciente, indique o tratamento e não obrigatoriamente notifique. E sabemos disso porque fazemos esse tipo de avaliação nos municípios e verificamos que aqueles que passam por alguma educação continuada ou por ações de educação em saúde com abordagem à esporotricose começam a notificar os casos que claramente já existiam e não eram notificados.
É uma doença de notificação compulsória, mas não é uma doença de notificação obrigatória para o tratamento. A pessoa pode comprar o medicamento na farmácia ou receber o tratamento enviado pelo Ministério da Saúde, pelo SUS.
É possível observar uma diferença no número de municípios que notificam a esporotricose humana, muito maior em relação à esporotricose animal, embora esta tenha um número superior de casos. A quantidade de municípios que notificam esporotricose animal gira em torno de 18 a 20, enquanto 44 municípios vêm notificando a esporotricose humana, porque recebem formação para isso.
É exatamente por isso que o projeto se justifica: não apenas pela história do grupo de trabalho, que é multidisciplinar e inclui biólogos, biomédicos, médicos-veterinários, farmacêuticos e outros profissionais. Mas também pelo objetivo de aumentar a conscientização e a sensibilização dos profissionais de saúde animal para a notificação e para os demais cuidados relacionados à esporotricose animal.
Nossa preocupação está inserida em um contexto de saúde global, de enfrentamento não apenas da esporotricose em humanos, mas também da doença em animais e do cuidado com o meio ambiente. É por isso que o projeto se chama Enfrentando a Esporotricose em um Contexto de Saúde Única.
Nossa Ciência: A que período se referem as ocorrências registradas?

Andreia Nery: Esses casos, como mencionei anteriormente, são acumulativos e correspondem aos atendimentos realizados de 2017 até hoje. Só nós, no Instituto de Medicina Tropical, somamos quase 600 casos, que são exatamente os notificados em Natal, o que demonstra que somos nós a referência em notificação.
Os demais casos atendidos na rede começaram a ser notificados graças à força-tarefa que temos desenvolvido, inicialmente antes do projeto e, agora, com sua continuidade, voltada à educação em saúde humana e, mais recentemente, também em saúde animal. Já realizamos uma segunda reunião com o Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV) para ampliar a sensibilização e, em breve, começaremos a fazer visitas às clínicas veterinárias, públicas e privadas, com o objetivo de fortalecer esse processo de conscientização.
Estamos em parceria com a Unidade de Vigilância de Zoonoses de Natal. Os agentes de endemias participam conosco desde o início, e essa colaboração tem sido determinante para a sensibilização dos profissionais envolvidos na saúde animal.
Humanos e animais domésticos
Nossa Ciência: Como a doença ocorre nos humanos? Quais são os sistemas afetados?
Andreia Nery: A doença se manifesta em humanos a partir de um trauma, de um foco de inoculação, que pode ocorrer de forma sapronótica, ou seja, a partir do meio ambiente ou zoonótica, quando a contaminação vem de animais. A primeira forma acontece, por exemplo, durante atividades de jardinagem, mas representa a minoria dos casos em nossa casuística, correspondendo a aproximadamente 2% das ocorrências.
A maioria dos casos é de transmissão zoonótica da esporotricose, geralmente envolvendo animais, especialmente felinos, que entraram em contato com o solo contaminado, seja ao enterrar fezes, urinar, cavar, caçar ou afiar as unhas nos caules das árvores.
A partir disso, tanto na forma sapronótica quanto na zoonótica, os humanos se expõem de duas maneiras: pelo contato direto com o solo, em atividades como jardinagem ou manejo de terra, e pelo convívio com animais domésticos. A infecção ocorre por meio de pequenos traumas, sejam os do dia a dia, sejam os provocados pelos animais, como arranhaduras, mordeduras, lambeduras ou até mesmo espirros. Um felino com muitas lesões fúngicas pode, ao espirrar, liberar fungos.
Os membros superiores são os mais afetados, principalmente durante o resgate, o cuidado ou o tratamento dos animais adoecidos. As mulheres geralmente se infectam nesse contexto. Em geral, a história clínica envolve uma arranhadura nos dedos ou nas mãos, seguida do aparecimento de pequenas lesões no local da inoculação e, posteriormente, em outros pontos, acompanhando o trajeto linfático e formando nódulos ao longo do sistema.
Já tivemos, por exemplo, o caso de uma criança que dormia com um gatinho adoecido. Ela dormia com o rostinho encostado no animal e acabou desenvolvendo uma lesão na testa.
Nossa Ciência: A reação é a mesma nos animais?
Andreia Nery: Em relação aos animais doentes, geralmente eles apresentam lesões no focinho e nas orelhas. Existe uma diferença entre a doença em humanos e em animais: nos animais, há uma dificuldade imunológica em frear o avanço da infecção. A imunidade celular é um pouco mais reduzida, e eles não conseguem conter bem a doença. Por isso, a população fúngica nas lesões dos animais acometidos é muito maior do que nas lesões humanas.
Sobra lixo e falta saneamento
Nossa Ciência: Quais são as características da doença e quais são os fatores desencadeadores?
Andreia Nery: Humanos não transmitem para outros humanos; não é uma doença contagiosa. No entanto, é uma doença que se transmite de gatos ou outros animais adoecidos para humanos, e também do meio ambiente para humanos e do meio ambiente para gatos ou outros animais, mas principalmente os domésticos.
Essa situação, que vem ocorrendo nos últimos 30 ou 40 anos, e que envolve a primeira epidemia registrada no Rio de Janeiro, próxima a um lixão, tem um contexto epidemiológico muito ligado aos determinantes sociais. São situações resultantes da crise planetária, com perda da biodiversidade, poluição e mudanças climáticas, que acabam interferindo no aumento do número de casos, na nutrição do solo e favorecem o ciclo de transmissão das doenças infecciosas e transmissíveis. Como já foi descrito em vários relatórios da Organização Mundial de Saúde (OMS) e de outras instituições, esses fatores impactam principalmente meninas e mulheres, trazendo maior morbidade, que é exatamente o perfil observado na esporotricose.
É importante lembrar que, geralmente, as pessoas infectadas vivem em locais pequenos, com grande concentração de moradores, em áreas periféricas e desorganizadas do ponto de vista arquitetônico, em decorrência da periferização das cidades e da falta de planejamento urbano. São lugares onde a coleta de lixo é irregular e onde falta saneamento básico. Enfim, locais em que as políticas públicas precisariam avançar, e muito, para garantir melhor qualidade de vida para humanos, animais e o meio ambiente.
Nossa Ciência: Essa doença está na lista das Doenças Negligenciadas?
Andreia Nery: A esporotricose não está claramente citada como uma doença tropical negligenciada, justamente por conta da negligência. Ela ocorre em vários países da América Latina, como Colômbia, México e Guatemala. Também é registrada na África do Sul e na China, mas tem um potencial de transmissão zoonótica especialmente no Brasil. No país, pouquíssimas cidades e estados ainda não notificaram casos da doença.
Historicamente, todas as doenças fúngicas são negligenciadas no mundo. Somente em 2022, com a publicação da lista de doenças fúngicas negligenciadas pela OMS, elas começaram a ser discutidas de forma mais ampla. O fungo Sporothrix spp. que inclui os Sporotrix brasilienses, causador da esporotricose de transmissão zoonótica, é um de 19 patógenos fúngicos prioritários. Ele foi classificado pela OMS como uma ameaça de “prioridade crítica” à saúde pública global. Foi citado, mas ainda não integra a lista oficial.
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