(Cellina Muniz)
“Toda linguagem é prejuízo” (Jede sprache ist ein vorurteil), disse Nietzsche em um dos seus incontáveis aforismos (“Fragmentos póstumos”). Sim, mesmo com as mais de 7 mil línguas faladas atualmente no mundo, é impossível dizer o real em toda sua totalidade.
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Fiquei pensando nisso e em outras “coisas” (que palavra ótima para nomear o que é inominável!) quando saí, deslumbrada, da sessão de “O agente secreto”, o mais recente filme escrito e dirigido por Kléber Mendonça Filho. Há mil elementos aí para se destacar – o excelente enredo, o elenco maravilhoso, a trilha sonora incrível, a direção de arte fantástica, a forma de narrar genial etc. etc. etc. etc., mas para quem ainda não foi assistir, só posso dizer uma única palavra: vá!
No entanto, em meio a todo o deleite provocado pelo filme, eu fiquei mesmo foi matutando sobre uma cena em especial, a cena em que, junto aos “refugiados”, o protagonista Marcelo (o lindo e talentoso Wagner Moura) revela seu nome “verdadeiro”: Armando. E é justamente na enunciação (in)equívoca) dos nomes (Armando? O nome dele é Marcelo…) que se desencadeia uma das sequências de maior tensão do filme, tudo ao som da “Briga do Cachorro com a Onça”, da Banda de Pífanos de Caruaru.
Das certidões em cartório aos apelidos
Uma pessoa não cabe em um nome só. Dos registros e certidões em cartório aos apelidos carinhosos ou zombeteiros, dos nomes artísticos aos nomes sociais, alcunhas, epítetos, pseudônimos e todas as muitas formas de nomear alguém ilustram como nossas indizíveis singularidades não se reduzem a um só nome.
O humor e a literatura estão repletos de casos a serem contados sobre a relação entre obra e nome. Penso logo em casos como o do gaúcho Apparício Torelly, cuja faceta hilária tomava forma no Barão de Itararé, ou das irmãs Brontë, que, para serem publicadas na Inglaterra vitoriana, precisaram assumir codinomes masculinos.
Mas tantos e tantos outros exemplos a serem citados: Olavo Bilac assinou muitas crônicas como Ariel, enquanto José de Alencar era simplesmente Um cearense. Odete Rios causou furor como Cassandra Rios e Patrícia Galvão brilhou mesmo foi como Pagu. Paulo Barreto flanou nas páginas cariocas da Belle Époque como João do Rio enquanto nosso cabra das Rocas João Batista de Morais Neto imortalizou a cena underground em Natal dos anos 80 como João da Rua…
Pseudônimos e iniciais potiguares

Por falar em terras norte-rio-grandenses, não poderia deixar de aludir ao livro “Pseudônimos e iniciais potiguares”, de Raimundo Nonato da Silva e Oswaldo Lamartine de Faria. Publicado originalmente pela Coleção Mossoroense em 1985 e reeditado pelo Sebo Vermelho em 2024, trata-se de uma lista colecionada pelos autores ao longo de anos. Lá figuram, dentre outros, J. Vadio, com o qual o jornalista e político socialista João Estêvão Gomes da Silva (1883-1959) assinava suas colunas humorísticas nos jornais da província. Ou ainda Policarpo Feitosa, o pseudônimo de um dos homens da oligarquia dos Albuquerque Maranhão, Antônio de Melo e Sousa (1867-1955), e com o qual assinou obras literárias como “Flor do Sertão” (1928) e “Gizinha” (1930). Sobre esse autor, o livro recupera relato preciosíssimo na imprensa da época a respeito do uso de seu pseudônimo:
Desde 1887 que escrevo com ele. É menos banal que meu próprio nome. Há tantos xarás por aí que os arquivos de polícia estão cheios deles.
Gerárd Genette, no ensaio “Paratextos editoriais” (tradução de Álvaro Faleiros pela Ateliê Editorial, de 2009), assinala as diferentes formas pelas quais essa relação entre obra e nome – a autoria – pode ser assumida e assinada ou não: o onimato (uso do nome civil), o anonimato (sem indicação de nome) e o pseudonimato (o uso de um nome “inventado”). Desse “efeito-pseudônimo” pode decorrer então um simples nome imaginário até mesmo toda a construção e expressão simbólica de um mundo subjetivo à parte. Fernando Pessoa e seus inúmeros heterônimos disseram isso de maneira exemplar.
Evidentemente, no enredo de “O Agente Secreto”, o pseudônimo foi utilizado mais como uma estratégia de proteção pessoal do que de pretensão artística para dar vazão a outras formas de ser e estar no mundo. Mas o pseudônimo sempre dá o que pensar sobre nossas pluralidades identitárias e subjetivas, sejamos “famosos” ou não. Porque somos muitos e um nome só não diz de tanta legião.
Assim falava Nietzsche… Ele que, aliás, assinou também como Dionysos.
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