Em entrevista para o Portal Nossa Ciência, Zéu Palmeira Sobrinho falou sobre a persistência do trabalho infantil na sociedade brasileira, tema principal do livro que ele acaba de lançar. O livro é uma reflexão crítica sobre o fenômeno do trabalho infantil.
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Ele destacou que essa prática é um reflexo da estrutura da sociedade de classes, ao revelar que apenas as crianças e adolescentes das classes trabalhadoras são submetidas a essa realidade. “Filhos da classe média vão para reforço (escolar), para atividade esportiva, vão realizar viagens, curso de idiomas, não vai trabalhar. O trabalho infantil nunca foi uma alternativa para as classes médias e para as classes endinheiradas”, afirmou.
O professor do curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRN ressaltou que no Brasil existe muito trabalho infantil e em diversas áreas. Seja no trabalho doméstico, em carvoarias ou no trabalho rural – e até em redes sociais. Segundo o pesquisador, todas são situações degradantes para crianças. “Tem a questão da publicidade envolvendo crianças e adolescentes, da produção de conteúdo, e até da exploração sexual por meio das redes sociais”, alertou.
Acompanhe a entrevista
Portal Nossa Ciência: Por muito tempo, o trabalho infantil era aceito e até valorizado socialmente, notadamente para filhos das classes trabalhadoras. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), isso foi mudando. O senhor concorda com essa afirmação?
Zéu Palmeira Sobrinho: O trabalho infantil foi aceito e valorizado socialmente, principalmente sob a égide da doutrina da situação irregular, notadamente para filhos das classes trabalhadoras. Por quê? É uma questão de classe. O trabalho infantil nunca foi uma alternativa para as classes médias e para as classes endinheiradas. Quem tem filhos da classe média vai colocar para reforço, para atividade esportiva, vai colocar para realizar viagens, para curso de idiomas, não vai colocar para trabalhar. Então, o trabalho infantil é uma realidade da classe trabalhadora.
O ECA mudou o paradigma. O ECA passou a considerar a criança como sujeito de direitos, mas a mentalidade ainda da doutrina da situação irregular, que colocava os filhos sob o jugo exclusivo da família, essa mentalidade ainda perdura, embora a gente saiba que o paradigma que foi introduzido pela Constituição de 1988, pelo Artigo 227, pelo ECA e pela Convenção dos Direitos da Criança, é o paradigma da proteção integral, do interesse superior da criança. Ou seja, o interesse da criança e do adolescente deve prevalecer mesmo quando é contrário ao interesse da família, o que não ocorria antes.
NC: Atualmente, ainda existe trabalho infantil? Em quais circunstâncias? Quais são os números?

ZP: Ainda existe muito trabalho infantil em todos os aspectos: trabalho infantil no campo, onde existe mais na atividade rural, trabalho infantil nas cidades, trabalho infantil doméstico, trabalho infantil em carvoarias, trabalho infantil nas chamadas piores formas de labor da criança e do adolescente. E há uma subnotificação do trabalho infantil por ser um fenômeno invisibilizado.
Segundo os dados oficiais do IBGE, nós temos pouco mais de um milhão e setecentos mil trabalhadores infantis. Porém, há estudos, como o realizado pelo professor de Educação da Universidade de Stanford, Guilherme Lichand, que dizem que o número de trabalhadores infantis no Brasil é irreal em face da subnotificação. E ele acrescenta que existem no Brasil mais de dez milhões de trabalhadores infantis.
Ele fez uma pesquisa a partir dos alunos da quinta série e viu que, nas residências em que os pais diziam que os filhos não trabalhavam, ao investigar verificou que os filhos trabalhavam. Muitas vezes os pais não querem dizer que os filhos são trabalhadores infantis para não atrair a atenção do Conselho Tutelar, não atrair a atenção da investigação do Ministério Público e não atrair também os problemas decorrentes da cobrança que a sociedade faz sobre as famílias que têm trabalhadores infantis. Então, esses dados oficiais são irreais.
O Guilherme Lichand diz que a subnotificação é tão presente no Brasil que o número real de trabalhadores infantis é sete vezes maior do que o número oficial.
NC: Assumir que há trabalho infantil é assumir que os órgãos de assistência estão falhando?
ZP: Não é necessariamente a essa conclusão que a gente chega. Os órgãos de assistência atuam de acordo com as limitações objetivas, reais, de acordo com as condicionalidades que são postas para eles. Então, se há um interesse na exploração do trabalho infantil, muitas vezes a assistência social não pode fazer muito. Ela faz muita coisa na rede de proteção à criança e ao adolescente, mas tem limitações. Veja que o próprio PETI, que era um Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, foi praticamente definhando, desidratando-se, e hoje ele é um programa que se limita a ações estratégicas, não é propriamente um programa tão amplo quanto foi pensado no início.
NC: O senhor poderia falar sobre o livro? A quem se destina?
ZP: O livro se destina a todos os profissionais que se debruçam sobre a questão social. Pessoas que estão no Direito, no Serviço Social, na Psicologia, na Saúde, na rede de proteção social da criança e do adolescente.
E ele se destina a fazer uma análise crítica de alguns aspectos referentes ao trabalho infantil, como o aspecto da comunicação, o aspecto da arte — como é que a arte expressa o trabalho infantil, como é que a comunicação se expressa no trabalho infantil.
Também a questão das tendências do trabalho infantil. Essa tendência da invisibilidade permanece. E nós temos hoje uma tendência muito grande do trabalho infantil nas redes sociais.
A gente viu ontem que o governo federal sancionou a Lei 15.211, uma lei muito importante que trata justamente da proteção das crianças e adolescentes em ambientes digitais. É o chamado Estatuto Digital da Criança e do Adolescente, o ECA Digital. É uma pena que essa lei não fale nada sobre trabalho infantil, muito embora a gente saiba que há muito trabalho infantil nas redes sociais hoje — com a questão da publicidade envolvendo crianças e adolescentes, a produção de conteúdo e até a exploração sexual de crianças e adolescentes por meio das redes sociais.
Então, por essas e outras, nós resolvemos publicar esse livro, que se destina a todas as pessoas que, de alguma forma, se interessam por uma reflexão crítica sobre o fenômeno do trabalho infantil.
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